sexta-feira, 27 de julho de 2012

“O Garoto Que Não Sabe Rir”: a arte do circo para fazer toda gente rir


Uma estreia para convidados, no Teatro Ressureição, em São Paulo, pois o espetáculo será entregue a projetos e apresentações itinerantes. “O Garoto Que Não Sabe Rir” é uma produção da Pessoa Neo Produções, e monta um conto infantil espelhado nos costumes antigos das famílias, colocando em relevo um livro de historinhas cômicas, na medida certa para o público infantil e o espírito pueril de quem acompanha a garotada. O garoto, personagem central, precisa aprender a sorrir, e o diretor Tiago Pessoa, junto ao texto de Rômulo Rodrigues, vão é colocar o público “a sorrir”, como diria o mestre Cartola.

O espetáculo é infantil, mas tem um propósito belíssimo e importante para qualquer idade. Sorrir é fundamental e pautando-se de princípios sociais e biológicos, é indispensável à saúde. A família de Adasir, interpretado pelo sagaz Gustavo Correia, busca métodos para fazer o garoto sorrir. O menino foi adotado por um rapaz cheio de marra e com sua pitoresca característica arcaica de puxar o “r”, Adasir era filho de artistas circenses, e quando muito novo foi o único sobrevivente de um incêndio. Em sua família adotiva, vive a irmã risonha e fofinha, vivida por Delidia Duarte, e a arrumadeira, interpretada por Marcela Arribet. Quando o circo chega na cidade, a família espreita a possibilidade do garoto sorrir, com as peripécias furadas do palhaço caracterizado em Guilherme Chelucci.

O palhaço sempre foi o símbolo do riso, apesar de já ter feito muita criança chorar ao deparar com sua desproporcionalidade e a pintura exagerada no rosto. Muita gente já sonhou em equilibrar-se nos imensos sapatos que caminham por debaixo da colorida lona de um grande circo, e no toque final aplicar o nariz vermelho ao rosto. Com os dedos, colorir de vermelho o contorno dos lábios e de branco trazer a palidez do rosto. Encaracolar de cores os cabelos e vestir as calças largas presas nas fitas do retalhado macacão. Olhar-se, por vezes, palhaço é coisa de criança que cresce com gente grande.
O circo sempre foi muito inerente a mim, desde muito jovem aqueci as palmas nas plateias dos picadeiros, das lonas mais simples às atuais luxuosas do Cirque du Soleil. Em muitas vezes, os palhaços, ao invés de me remeterem ao riso, trouxeram-me emoção, pelo fato de serem capazes de a qualquer momento criarem situações e viverem da expectativa de fazer o outro rir. A arte circense era praticada já na Idade Antiga, em todas as civilizações, nem era necessário um local demarcado para isso, a rua mesmo, como até hoje acontece, era palco pra tudo.

No século VI a.C. o Circo Maximus hasteou sua tenda em pleno Império Romano, que com seu fim levou artistas para as ruas, quando nasciam as trupes de saltimbancos.

No entanto, o circo moderno nascera no século XVIII, na Inglaterra, que configuram as mesmas características de hoje. O picadeiro, a lona e as típicas atrações. Já os palhaços, surgiam até mesmo nas cortes, até mesmo nas tribos indígenas. Nas cortes eles tinham a incumbência de fazer os reis darem risadas, inclusive com falatórios do povo contra a própria corte. Na Idade Média, os artistas vagavam por cidades e feiras livres apresentando números cômicos, destes, os melhores eram escolhidos para bobos da corte, os que animariam os reis. Mas foi na Commedia Dell’arte, no século XVI, que emergiu a primeira trupe de palhaços. Passaria, com prazer, muito mais tempo falando deste movimento,  que é um período de intensa e deliciosa produção artística, mas abreviarei, tenho que voltar a falar de “O Garoto Que Não Sabe Rir”. Na Commedia Dell’arte surge, por exemplo, o Arlequim, um estilo clássico de palhaço. Estes hilários personagens, de rostos pintados, perucas ou chapéus cheios de acessórios, roupas coloridas e características desproporcionais, ganharam o circo, no século XVIII e estenderam-se pelo mundo todo. Na televisão moderna e contemporânea do Brasil, o Bozo, o Arrelia, Picolino, Carequinha e outros, ganharam a arte e o gosto do público. O palhaço é um dos mais aclamados símbolos da arte. Até mesmo tristes são capazes de nos fazer rir, com singelas graças. Essa é a arte do palhaço!
O espetáculo, de direção do jovem Tiago Pessoa, que já renda um grande fio de peças, e com uma engrenada maestria de dirigir, com sua sutileza e cavalgando rumo ao impecável, testando e adaptando novos talentos e adaptando-se ao seu próprio desafio de chegar ao quadros dos fabulosos, germina um palhaço contemporâneo, de graça atual, de movimentos engessados pelo tamanho do pouco palco em que estreou, mas com um sorriso carente de outros no rosto, e de olhar pitoresco. Guilherme Chelucci desvela um talento fabuloso, quando mexe dos pés a cabeça, e estica um texto ameaçado por sua voz grossa, mas que no personagem afina um humor belo, e rebusca um tom que chega lindamente aos ouvidos.

Gustavo Correia é o menino que não sabe rir, é quem trará, em seus movimentos tão jovens e no olhar calouro, o incrível recado da importância do riso. O menino corre e desenvolve-se muito bem no palco. Falta subir o tom, se não há microfone, não pode-se apoiar com generalidade a acústica do teatro. Ele, ainda, trabalha as palavras, o espetáculo tem isso, inunda uma lousa de palavras e caminha bem pelo texto do honorável Rômulo Rodrigues. Marcela Arribet, arrasta um sotaque nordestino para chegar a sua personagem de arrumadeira, que ao fim arma uma boa surpresa, não acho necessário o sotaque, mas fica leve, sem agressão. Cai-lhe bem a fisionomia exagerada da má sorte de sua figura de nascença, talentosa. Caio Theodoro tem um tamanho que aumenta no palco, volto a dizer do pouco espaço que o palco permite à evolução do espetáculo, mas ele o aproveita bem, entona a voz com primor e emite expressões de um disciplinado ensaio.  Delidia Duarte tem um riso estridente, que faz o humor ganhar a cena e sua versatilidade, em que falar, dançar e cantar estão no ponto exato.

As estreias são necessárias para a construção do que faltou, uma estreia é necessária para brilhar os olhos e também boxear o diretor a reconhecer suas falhas. Que não são crimes artísticos, é apenas o olhar do palco com o público na quarta parede.

O espetáculo tem entradas erradas de luz, os tempos de uma cena para outra prolongam-se em vazio, falha o som, e o fantoche, usado no início, para remeter ao “garoto”, perde a serventia num grande tempo, e torna-se elemento cênico, sem uma passagem. Ainda falta um compasso, por vezes os atores estão em ritmos desiguais. As maquiagens são fracas, e vão com o tempo tirando a beleza da cena, porque desfiguram os personagens. O palhaço vai esmaecendo a cor do rosto, ao toque do suor. Valeu como ensaio para o que virá, a família Pessoa, com sua generosa produção, supera-se a cada dia.
A iluminação, que apesar do tempo errado, tem cores bem pintadas no palco, e é assinada por Luiz Felipe Petuxo. O cenário de Paulo Tardivo, faz viajar a um tempo distante, enquanto o teatro entrava para o templário da arte. Há tempos, o teatro fazia-se no palco preto, de cortinas pretas, e apenas adereçava-se a arena. Coloria e ornamentava com elementos de cor, ou pasteis. Mas, quando o circo surge, vê-se cores, e movimentos. Não é preciso trocar nada, os objetos evoluem, como caixas de papelão que toda criança gostou de brincar. O figurino, que permite cores apenas ao palhaço, é de Michel Gomes, com uma rica costura. Telma Dias assina a coreografia, apertada no palco, mas que permitiu-me visualizar com a beleza proposta. Tem música, de Marcio Eduardo Melo e a letra do próprio Rômulo Rodrigues.

Gostei, indico para que recebam este projeto, as crianças precisam de um bom teatro, para crescerem evoluindo a arte. Qualquer adulto é capaz de gostar, todos nós somos infantis entre eles. O tema é lindo, e a moral impecável. O espetáculo é um banho da produção de Isabel Pessoa e João Victor Néo, e a baianidade de Tiago Pessoa, o triângulo do novo arrastão promissor da arte cênica. “O Garoto Que Não Sabe Rir” foi uma estreia para convidados e ganhará turnê em breve, basta o teatro abrir-se mais para personagens fora do suposto eixo “comercial”. O Brasil precisa de mais arte e menos negócio. Caso seja para ser assim, esse é um bom negócio.



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Rita Lee é pra se ouvir de joelhos e com “reza” boa


Quando eu conheci a Rita passei a compreender de onde brotava o rock que tanto falavam no Brasil. Não há nada mais gostoso que ouvir a exploração dos instrumentos e de uma voz que recusa playback, após a Jovem Guarda, que vestiu o País de jaqueta preta. Depois que o Brasil conheceu a trupe da Jovem Guarda, eis que surge a mulher que deixaria de joelhos aos seus cabelos acobreados. Pra rezar? Agora sim! Mas ela nunca negou seu teor revolucionário. Quando eu ouvi as guitarras de Roberto de Carvalho e de sua prole Beto Lee, e mais recente e com audácia as introduções do piano de Danilo Santana, eu conheci uma das minhas predileções, o rock, mas o da Rita Lee. Agora com “Reza”, seu mais novo e impecável álbum, cheio de balangandãs e balacobacos.

Ouvir Rita Lee é um pouco além de estourar uma trincheira, ultrapassar uma geração, retroceder e interceder, ir além de qualquer tempo, reler e queimar seus próprios contos e ver chamuscar arte. A Rita é um vulcão! Prepare-se para aprender novos adjetivos, porque eu vou precisar de muitos daqui pra frente!

“Por causa de um baseadinho?”, foi a frase que trouxe de volta as indagações de Rita Lee para a história. Ela chegou a ser convocada para depor numa delegacia, em seu show de despedida dos palcos em Sergipe, após incomodar-se com a presença de policiais revistando fãs em seu show. E foi, sem arrependimento. Não precisamos levantar bandeira alguma, mas seu verbo é transitivo e eu assino embaixo.

O dia em que nos encontramos eu tinha pendurado no ombro uma câmera fotográfica. Mania de jornalista em andar com o olho eletrônico sempre ao alcance, espreitando o que pode acontecer no caminho. Dei-lhe um abraço, típico de quem encontra a Rita, e seu frenético batom avermelhado, que contrasta com os cabelos, fitou meu rosto e alimentou seu sorriso. A Rita colocou as mãos na minha câmera e disse: “Isso aqui não é feito pra fotografar? ‘Tá’ esperando o que pra tirar nossa foto?”. Isso é artista que se respeite? É! Tiramos a foto e o carro chegou. Foi uma das últimas vezes que nos vimos. Estou com saudades. O palco, mais ainda!
No episódio em que Rita foi autuada pela polícia, marcara, tipicamente, sua despedida aos palcos. Os devera roqueiros derramavam lágrimas e já inspiravam as saudades. Mas, enquanto fechava sua vida dos palcos, Rita e Roberto preparavam um álbum de cetim. “Reza” chegou para coroar os cabelos de fogo e nos colocar a ouvi-la de pernas pro ar. Rita, então, despedia-se dos palcos.

“Reza” tem uma coisa que talvez um filho, ludicamente falando, de Dorival Caymmi e Janis Joplin representaria em pessoa. O batuquinho do baticum de uma macumbinha, com a magnífica versão de rock dedilhada com gozo nas guitarras e nos graves do baixo mestre. Tantas palavras, algumas que vou inventando, outras que já ouvi entre a Bahia, São Paulo, Rio e Londres, mas são cabais para falar de “Reza”. Os trabalhos abrem-se com a primeira faixa chamada “Pistis Sophia”, e como o Mar de Sophia e o Mundo de Sophia, clássicos, desvelam a religiosidade de Rita. É um auto-retrato de fé, num ruído gostoso. Consigo ver Rita beijando santinhos, inventando suas próprias orações e pouco se lixando pra opinião de sua versão ateia de se viver. São sons, sem predicados, com a função de introduzir o álbum, jogar os búzios na mesa, limpar o congá, jogar arruda na cabeça, dar um trago no charuto, jogar o uísque pra trás e lavar as mãos com água de cheiro. Sem esquecer dos três nós na fitinha do Bonfim. “Reza” começa assim, trazendo em seguida a música que intitula o álbum.

Rita Lee Jones, já foi batizada com nome de artista, nasceu no último dia do ano, na capital paulista, e foi descrita por Caetano Veloso como “a mais completa tradução” de São Paulo, na canção “Sampa”. No Brasil, é a cantora que mais vendeu álbuns na história, com mais de 65 milhões de cópias.

Rita integrou os Mutantes, na década de 60 e meados de 70, onde serviu letras até hoje reconhecidas em sua voz com uma lembrança enxuta dos fãs. Sempre com o dom de improvisar instrumentos, chegou a utilizar uma bomba de dedetização para sonorizar “Caminhante Noturno”. Quando deixou o grupo, ao fim de seu casamento com o outro integrante, Arnaldo Baptista, juntou-se com a amiga Lúcia Turnbull para lançar a dupla As Cilibrinas do Éden. Com o término da dupla, Rita ingressou no Tutti-Frutt, e em seguida fez carreira solo, quando, entre outras, lançou “Ovelha Negra”, mostrando que compositora era. Em 1976 conheceu Roberto de Carvalho, com quem teve três filhos e laçou uma estupenda parceria musical. Um dos filhos é Beto Lee, guitarrista de dedos afiados, que deu-lhes de presente a neta Izabella, pondo outra personagem factual da família Lee para correr pelos corredores do colorido lar de Rita e Roberto.
Na época em que o rock ganhava cores tropicalienses havia uma certa divisão na música. A ditadura rolava solto pelas ruas e a censura pilhava os palcos. Homens sem escrúpulos algum tomavam conta do que hoje chamam de política. Elis Regina passava pelos corredores de festivais sem levantar assunto com Rita Lee, mesmo a encontrando pelo caminho. E quem nunca admirou a jazzística voz de Elis? Rita, mesmo a adorando, ficava na dela.

Em 1976, Rita é presa por porte de droga. Não que a tenha usado, mas amigos frequentavam sua casa e largavam fagulhas pelas peças. Grávida ouvia suas músicas em mente por detrás de ferros quentes da prisão. A única a visitar foi Elis, e essa foi tamanha surpresa. Como grandes amigas, Elis fazia rebuliços na prisão, e quando Rita saiu a colocou pra cima, convidando para espetáculos e musicais. A chamava de Maria Rita, e anos depois, ao nascer sua única filha, a batizou com o apelidinho que nomeava a amiga do rock.

Em 1996 Rita Lee, enquanto brincava com seu cachorro, caiu da sacada de sua casa e triturou o côndilo maxilar. O episódio quase a afastou definitivamente da música.

Não posso deixar de relembrar um encontro histórico. Rita em casa, toca o telefone e o pai da bossa apresenta-se cantando “Mania de Você”, ainda ao telefone. Rita cai em si, e comprova a veracidade da sorrateira voz que sussurra sua composição. João Gilberto, ao outro lado da linha, a convidava para gravar, em 1982, um especial seu na TV Globo. Enviou para ela uma fita com a canção “Jou Jou Balangandãs”, e continuava a telefonar para explicar tudo sobre a música. Além de tudo disse o vestido que ela usaria. A apresentação aconteceu, sem ensaio. Foi uma das únicas vezes que vi João Gilberto cantar de pé.

Rita Lee mandou para as agulhas das vitrolas inúmeros Lps. Eu ainda admiro muito aquela capa azulada em tons de água, com os traços tropicais, do álbum que trazia seu abraço com Roberto de Carvalho. Tenho ele comigo. O som do disco é mais íntimo, aquele ruído da agulha beijando o acetato constantemente é como ouvir os pássaros que solfejam na penúltima faixa de “Reza”, que também ganhou bela versão em disco.
Essa penúltima faixa tem um nome bem complicadinho de pronunciar, mas fica fácil na segunda estrofe. As músicas de versos e cheias de transições instrumentais e com bárbaros solos gravam rápido na cabeça da gente. Duas vezes ouvindo o CD eu já estava repetindo “As Loucas” e “Tô um Lixo”, ambas com letras rápidas e de um entendimento direto. Voltando à penúltima faixa, “Bamboogiewoogie”, tem um cangerê com cordas e palmadas. É uma novidade, como foi “Bat Macumba”, na Tropicália.

“Reza” tem o calibre da Biscoito Fino, que é a casa, em plena sala de estar dos bons amigos. Dos bon vivants, da boa música.

No último show em que fui havia uma banda, vou poupar os palavrões, que aliás, já evitei durante todo o texto, que era “boldo na veia”. Danilo Santana arrebentando nos teclados, como se fosse a ópera do rock. As cordas regidas por Beto Lee e Roberto de Carvalho, além do baixo de Brenno Di Napoli. Os vocais de apoio de Rita Kfouri e Debora Reis e as pancadas na bateria de Edu Salvitti. Voltei pra casa neste dia sem querer ouvir mais nada durante uma semana. Eles todos são muito bons.
Não vou ficar falando das outras músicas, apesar de não ter falado nada sobre “Reza”, a segunda faixa do álbum. Cada um tem uma reza, a da Rita é cheia de mandingas. Imagine um patuá cantado. Isso é “Reza”, a canção guardada que foi jogada a rosa dos ventos desenhada na capa do CD. Mas, não é uma rosa dos ventos. São as cópias do olhar de Rita banhado pelos fios vermelhos de suas madeixas. Ouçam o disco inteiro e verá que cada um tem algo a declarar. Ou cale-se, vá pintar. Ela faz assim! É interessantíssimo.

Rita Lee deixou no ar sua volta aos palcos, após declarar que não voltaria mais a fazer shows. Eu estou apostando que volta. Sua intimidade é o palco, é o som, é estar entre suas mais chegadas guitarras e de apito na boca.

Rita, volta que a gente tá esperando você!

terça-feira, 17 de julho de 2012

Criolo, um nó na orelha, um rap de Buarque


É claro que Chico Buarque ajudou no adjetivo a Criolo, em um de seus shows parafraseando o próprio MC, em uma paródia feita sobre “Cálice”, sucesso de Burque e Gilberto Gil. O que sai de Buarque é lei. Criolo é o mais recente MC que ganhou âmbito nacional poetizando o dilema das periferias em suas próprias canções. O MC, como são chamamos os rappers no Brasil, saiu com três troféus no 23º Prêmio da Música Brasileira, no mês passado, e tem feito sucesso com seu álbum “Nó na Orelha”.

Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, foi criado na comunidade das Imbuias, região do extremo sul de São Paulo. Seu pai é metalúrgico e a mãe formada em diversas áreas, ambos são cearenses. A mãe estudou com ele, na mesma clase, durante todo o Ensino Médio, na época “Colegial”, e hoje promove encontros literários e filosóficos. Irmão de mais 4, Criolo é fruto de uma poetisa de palavras e espírito, aos onze anos, numa ida ao colégio, conheceu a poesia nas mãos dos meninos que a compunham e por ela se encantou. Nas rádios a poesia tinha o nome de rap.

Sua mãe sempre gostou das letras, e deu-lhe este gene em caráter hereditário. Há um bom tempo, quando comprava-se carnes os açougueiros embrulavam as compras em folhas de jornais, e ela corria para casa na tentativa de ler o conteúdo do periódico, antes que o suor e o sangue da carne o sucumbisse.

Criolo também faz sucesso porque não banha-se dos holofotes, tampouco prioriza os endereços onde as pessoas vivem. Sua origem humilde permite-lhe compartilhar a simplicidade e a intelectualidade de sua música com o público e o torna produto do meio, deixando a filosofia de lado, digo-lhe como produto, não em mercadoria, mas em letras. O último álbum lançado, “Nó na Orelha”, tem todas as faixas disponíveis para download na internet, e foi produzido pelos parceiros Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman.
Este cara, que veio a somar nos gênios das composições, ouvia música em vinil e ainda defende a qualidade intimista que os acetatos emitiam. Ele, inclusive, reunia pessoas para ouvir os clássicos Lps. No bairro do Grajaú, região sul de São Paulo, cadenciou sambas com o grupo do Pagode da 27, batucantes do samba no coração da periferia desta imensa capital, que sempre lhe serviu de inspiração em composições como “Não Existe Amor em SP”, que lhe rendeu a frase dita e compartilhada por milhares de brasileiros, e que foi também cantada ao lado de Caetano Veloso.

Criolo, com sua voz, que vai ganhando sotaque ao gingado da conversa, ainda recebe cartas no mesmo endereço no Grajaú, enquanto viaja pelo Brasil e o mundo mostrando a que veio. Aparece no Pagode da 27 para misturar rap, música popular e samba num jeito bosseiro da música de periferia, que cada vez mais ganha frequência nas rádios e downloads na mídia eletrônica.

“Nó na Orelha” é um belo quadro que qualquer dona de casa e a moçada pendura na parede para admirar de acordo com sua interpretação e sua cultura, com palavras bem cursivas e frases elaboradas ao timbre pitoresco e aos acordes de instrumentos bem reservados ao gênero eletrizado do rap, vão passando de faixas diversas misturas de uma nova característica que só o seu rap tem, casado aos ritmos oriundos de qualquer extremo do Brasil e encontrando numa só artéria, a principal: boa música!

Mulato, branco, amarelo, negro de pele mameluca, pardo e com a sensibilidade de um poeta, há todo tipo de mistura em sua veia musical. Sua origem é como a de todo mundano cancioneiro, ele nasceu dos olhos do mundo, numa lágrima de sofrimento dos pobres, e no sorriso deles em sua riqueza de sons e sentidos.

Gravado por um amigo, Criolo cantou uma paródia feita da canção “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil, exumando o sofrimento que a canção exprime em interpretação e jorrando educação cívica. Uma das estrofes dessa composição parafraseada pelo MC diz: “Os saraus tiveram que invadir os botecos, pois biblioteca não era lugar de poesia.
Biblioteca tinha que ter silêncio,
e uma gente que se acha assim muito sabida”.

Essa recomposição, feita por Criolo, foi cantada por Chico Buarque em um de seus shows e emendada a um agradecimento cantado em forma de rap ao MC.

Criolo trouxe uma canção da década de 70 para sua formalidade contemporânea e deu voz ao morro na intelectualidade Buarquiana, através da qualidade sensorial de sua música. Acabo de dizer isso, mas repito, Criolo faz a canção sensorial.
Na última edição do Prêmio da Música Brasileira, que homenageou João Bosco, onde Cauby Peixoto e Alcione receberam o prêmio de melhores cantores em suas categorias, Criolo recebeu o prêmio de Melhor Cantor e pelo Melhor Álbum na categoria HipHop, além de Artista Revelação.

Sua alimentação musical permite uma qualidade técnica simples e de total formalidade em composição. Criolo tem a voz calma e as canções variáveis em rígidas e sensíveis, pelo caráter poético e também incisivo ao morro que ele dá voz.

Hoje ele passeia pelo mundo, enquanto o mundo passeia em sua mente!



quinta-feira, 12 de julho de 2012

Atreva-se, a comédia cinematográfica do teatro


Seria possível usar a expressão “um contemporâneo e inédito clássico cinematográfico nos palcos do teatro”? Acredito eu, que para falar de “Atreva-se”, sim! A peça de Maurício Guilherme, com o toque hilário da direção de Jô Soares, está em cartaz no Teatro das Artes, em São Paulo, e traz uma comédia em preto e branco, num “formato 3D” do cinema noir, para o teatro. No elenco a irreverência de Marcos Veras, Júlia Rabello, Mariana Santos e Carol Martin.

Maurício Guilherme tirou o texto da gaveta e revelou em sua película um emaranhado formado por três histórias cômicas, que parecem ser o que é, mas não são aquilo que parece ser. A história adapta-se a uma comédia noir, e torna-se rapidamente adaptável a isso. Na década de 40, os filmes noir (film noir, do francês, filme preto) surgiram nas telas como um novo modelo visual de exibição cinematográfica. E é neste molde que o espetáculo “Atreva-se” encontra o seu roteiro, o deslumbrante figurino, os gestuais, o cenário e o recorte das cenas.

Como todo antigo cinema, o lanterninha passa pela plateia com sua luzinha acesa. Mariana Santos deixa seus apagados e destemperados personagens da televisão para um grandioso texto cômico, em molde de stand up comedy, vai encaixando improvisos e apresentando figuras naturalmente irreverentes do público. Com um alto teor de humor, Mariana desfila um texto bárbaro e sem exageros, apesar do permitido e tolerável à comédia. Quando ela bate a claquete anunciando a primeira cena da história, Marcos Veras e Júlia Rabello destacam-se para além de um casal da vida real, mas um belo encontro teatral.
Com os objetos da sala de um casarão todos encobertos por panos brancos, para evitar o pó, e os quadros postos no chão, mostrando as marcas de anos pendurados na parede, o corretor de imóveis, interpretado por Marcos Veras, acentua a perfeição da casa, construída em frente a um parque municipal, com a arquitetura preservada, e a póstuma história de outras duas famílias que ali moraram em décadas passadas as de 1963, quando ocorre a cena. A casa é apresentada a compradora interpretada por Júlia Rabello, que contracena com o enriste dedo médio paralisado para o alto e o caolho do corretor.

Com as tiradas de humor, o sobretudo vermelho com os cordões dourados arrobustando os trajes da lanterninha, é anunciada a segunda cena, sob a batida da claquete. Esta é uma regressão para a cena que acontece na década de 20. Grandes quadros presos à parede, malas e baús Louis Vuitton e um imponente relógio imperando entre as janelas de vidros curtos e alto cumprimento. Ao lado esquerdo o telefone e a mesinha de madeira, combinando ao direito com uma bela cadeira e um prateado castiçal ao lado do rádio, ao meio um sofá de centro assentando o chapéu de Júlia e sua personagem, quando no alto acende o generoso lustre em preto e cristais, que transpassa a fumaça do cigarro aceso. Uma governanta, interpretada por Carol Martin, de longo vestido preto e cabelos gomalinados para o lado, cruza a casa revirando a poeira e assustando o homem medroso interpretado por Veras. O clima policial da história entre os irmãos que moram na mansão, envolve a sinistra governanta e entona o clímax com o fresco toque cômico que vai evoluindo junto à espetacular desenvoltura dos atores.

O autor tira da manga mais uma história para envolver a comicidade policial e entrelaçar as três cenas à fim de chegar a data da compra da mansão. Com uma tímida reformulada na sala, e os quadros renovados, o tom preto e branco recebe nova história na velha mansão. Duas primas aguardam com ânsia sincronizada a visita do amigo, que gira para mover-se em sua perna mecânica sobreposta num belo corte de smoking acalentando no peito um broche redondo do Presidente Roosevelt, por quem saúda. Neste cenário as duas almejam o mesmo homem, e por ele tramam um irreverente assassinato.

Na batida da próxima claquete é trazida de volta a cena da compra do imóvel, em que a personagem de Júlia Rabello aceita as chaves das mãos tratadas com luvas de couro pretas do corretor vivido por Marcos Veras. Desde aí começam o desenrolar das histórias e a descoberta da existência daqueles personagens, tão incitados pela inquieta lanterninha.
Não é difícil sentir-se como num cinema, sob a luz desfalecida em certas cenas e robustas em outras. A galante iluminação de Maneco Quinderé surpreende pelo efusivo trabalho retirado de seu vasto cartaz de espetáculos, e contrasta com o garboso cenário de Chris Aizner, que troca venustos figurinos do venerado Fábio Namatame. Para a trilha disso tudo, os sons modulados com abafamentos típicos, para a perfeita sonoridade da época, é obra de Eduardo Queiroz.

Os sobretons pretos, brancos e de prateados a cinzas caem aos veludosos e vistosos corpos cênicos de Júlia Rabello e Carol Martin, que emplacam mulheres de olhares férteis, capazes de brotar várias e gigantes personagens, encontradas em atrizes de semblantes e timbres tecnicamente cinematográficos, adentrados ao teatro. Mariana Santos traz em seus cabelos loiros, caídos pelo casaco vermelho, a única cor escapada do noir para a plateia, com a inteligência cômica acrescida por Jô Soares numa personagem que tornou-se de extrema importância para a acentuação do humor no espetáculo. Enfim, Marcos Veras é a caixinha de surpresa, que salta um personagem melhor do que o outro, carimbados pela astuta personalidade teatral do ator e sua digital evidentemente impressa a cada característica dos personagens. Este foi escolhido a dedo, como todos os outros, mas como o único homem sobre o palco, destaca a impostação e relevância de sua presença em cada cena. Ouso em dizer que ele é o Charlie Chaplin dos dias de hoje, de cara e gestos.

O texto de Maurício Guilherme reflete o genial suspense empoeirado de seus arquivos dos anos 90, para a magnitude de Luciana Sendyk, que colaborou com o tratamento e lapidação do roteiro. Está nos olhos de qualquer bom entendedor o primor do espetáculo e sua característica captada por ninguém melhor do que Jô Soares, amante das duas artes cênicas, do teatro e do cinema, que coloca um esquete de noir para um palco teatral. Isso é no mínimo sensacional.
O espetáculo é o brilho inspirador de clássicos do cinema como “Expresso para Berlin” e “Frankenstein”, além de outros, por suas paradas pitorescas e os clímax, além da incompatibilidade de fatos e confusões atreladas ao suspense, que logo tornam-se compatíveis, quando desenrolados. Como já dito, o cinema 3D sempre existiu, e ele chama-se teatro, eis em “Atreva-se” a personificação disto.

Algumas fotografias, de Priscila Prade, feitas em quadro e moldura, como as que ornam o cenário de “Atreva-se”, estão em exposição no bistrô “Paris 6”, com fotos do espetáculo. É possível fazer xixi sendo observado pelo único olho aberto do personagem de Marcos Veras. Ainda não sei qual é a sensação, mas certamente vale a pena compartilhar da urinada.

A produção é de Rodrigo Velloni, com realização da Velloni Produções Artísticas.  A peça está em cartaz no Teatro das Artes, no Shopping Eldorado, em São Paulo. Quintas e sábados às 21h30. Domingo às 20h. Os ingressos custam entre R$ 50,0 e R$ 60,0. A temporada esta prevista até o dia 2 de setembro na capital. Recomendo assistir, e depois dá uma passada no Paris 6, além das fotos, o cardápio é ótimo.