segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Gal Costa faz show em SP e mostra porque é a maior cantora do Brasil


Mais uma das brilhantes cantoras brasileiras apresentou-se no projeto Mulheres do Brasil, do Via Funchal. Gal Costa, subiu ao palco paulistano no último sábado (22) e inaugurou a primavera numa noite gelada, com uma voz batizada por sua gloriosa carreira e os mais novos sucessos escritos e dirigidos por Caetano Veloso. O show “Recanto” é um dos pontos mais surpreendentes da trajetória da Gal na música, ela fica à vontade, muito próxima ao público e rejuvenesce em cada acorde e nas sintetizadas eletrônicas que colocam o público de pé e sem economizar palmas.

Estreei na RedeTV com uma crítica à estreia de “Recanto”, em São Paulo. Foi meu primeiro texto sobre Gal Costa. Estreei na crítica com um texto sobre Maria Bethânia, há alguns anos. Isso mostra que estou entre figuras valentes da música e que estreei, em ambas, com o pé direito. Ver Gal, desta vez foi mais do que especial, ela estava deslumbrante, cantando e sorrindo, cantando e interpretando, desta vez sem os olhos agudos de Caetano na plateia, que vão fitando com carinho as passadas de Gal nas extremidades do palco.

Gal não precisa de cenário para enfeitar de lacinhos o seu espetáculo, basta sua força natural de levar a musica ao palco e vesti-lo por um swing que encontra-se entre corpo e voz com uma notoriedade e beleza impecáveis. Num fundo preto, pouca iluminação começa a desvelar o “Recanto Escuro” de Gal, apenas seu rosto impera à frente da banda e o olhar acompanha o sucesso dos lábios que deixam escapar a melhor voz de todos os tempos. Gal tem uma coisa, não perde nem os agudos, nem os graves, enquanto todos os outros perdem.
As canções de “Recanto” são todas de Caetano Veloso, assim como a direção do show, feita para encantar os ouvidos, os olhos e qualquer sentido do público. Feita para a exuberância e ao mérito de Gal. Feita para matar qualquer fotógrafo que empina suas lentes à busca de sugar qualquer luz que surja num repente da escuridão do palco. O clima é proposital e válido para deixar despindo a imagem de Gal, aos poucos, enquanto as canções ganham embalo. Ao final, “Modinha para Gabriela”, de Caymmi, quebra o protocolo, por conta da minissérie exibida pela TV Globo, com o toque baiano que a cantora ganhou de berço.

As letras do álbum “Recanto”, que recaem ao show como uma luva branca nas mãos de uma baronesa, são o retrato de épocas vividas por Caetano e que recostam sobre a vida de Gal Costa. São canções que só servem para serem cantadas por Gal, pois requerem sua jovialidade e ao mesmo tempo seu robusto trajeto artístico que ultrapassa quarenta anos. Caetano tem a força na direção, enquanto Gal tem a brutal força em peitar um novo tempo, em que qualquer música de pouca letra emplaca na voz de jovens “cantores”. Lançar um álbum como “Recanto” e colocar isso tudo no palco é peitar um tempo que está deixando sua história de lado, só Gal mesmo pra fazer isso. Como diz o próprio Caetano, inclusive na voz de Gal, em “Força Estranha”: “o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”. Essa é a frase que calça a vivacidade de Gal numa era que a destaca.

Voltei do show com algumas canções em mente, cravadas pela expressividade de suas combinações e letras e por trazerem para o atual a labuta gloriosa que Caetano e Gal passaram para ampliar a música brasileira. Notáveis sucessos como “Baby” e  “Meu Bem, Meu Mal” rebatem ao tom do público que canta junto à Gal. “Um dia de Domingo” tem, na segunda estrofe, uma lembrança ao dueto com Tim Maia, e o passeio indescritível e típico de Gal, entre o agudo e o grave tomam conta de grande fatia do espetáculo. “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Wally Salomão, recebem do perolado timbre de Gal uma versão quase que indescritível. Eu gostaria de transmitir meu arrepio, meu espasmo ao ouvir essa canção no show, talvez fosse mais fácil transpassar a química emitida pela interpretação dela naquele momento. É como ouvir a melhor música na voz da melhor cantora. A interpretação e o arranjo trouxeram isso.
As canções de “Recanto” dedilham por “Tudo Dói”, que embala ruídos eletrônicos operados pela lembrança bossanovense, enquanto “Mansidão” tem um tira gosto em samba canção com uma seda desfiando em lindo som, assim também aparece “Segunda”, que arrasta os pés num bom chiado pé de serra. Dos morros desce “Miami Maculelê” num estampido cancioneiro da mais forte atualidade, é o ápice da novidade entre Caetano e Gal, exuberando na canção um funk cheio de histórias rimadas em prol do ritmo. “Neguinho” é a crítica lambuzada de irreverência e ritmo, escrevendo em áudio o avanço da história humana e sua crise de classes.

Quem não assistiu ao show não sabe o que é o melhor show do ano e a surpreendente chegada de Gal Costa no emaranhado de álbuns produzidos em série pela turma que tenta embarcar numa carreira de longevidade.

Gal estava solta, ilesa, sorridente, sensível, amava o show como uma primeira noite de amor. “Recanto” é um show de árias populares! Isso é bárbaro.

Gal é eterna desde sua entrada para a música. O que João Gilberto disse não foi nenhuma premonição, foi uma constatação do que sempre foi. Ele confirmou antes do Brasil e do mundo, que Gal era a melhor cantora do Brasil.
O Via Funchal levou para o palco a representante da voz e com o brilho natural fez a continuidade de “Mulheres do Brasil”, o projeto que realiza uma agenda nobre destacando belos nomes da música. Eu não poderia deixar de ressaltar a dedicada equipe da casa, que abre suas portas com alegria e logo na entrada lustra o carpete com o sorriso convidativo de Miriam Martinez, nossa nobre assessora. Ousadamente, patenteei-a como nossa!

O Via Funchal, em “Mulheres do Brasil”, trará também Ana Cañas e Céu, em seguida Maria Rita, cantando Elis. Vanessa da Mata está na agenda de outubro.

Gal Costa, a Rainha de Copas da MPB, gravará o show “Recanto” para DVD, no Teatro Net Rio, o antigo Thereza Rachel, nos dias 8 e 9 de outubro. Escreverei de lá para o deleite do público, não irei perder. Em seguida, Gal apresenta-se no Salvador Barra Hall, na capital Baiana.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Dia Nacional do Teatro deve-se ao diário ofício de quem o faz


O termo que dá nome a arte do movimento, da fala e do texto em cena vem do grego, que quer dizer olhar com atenção e contemplar, portanto, desliguem os celulares, deixem a conversa pra depois, permitam-se sorrir, chorar, envolverem-se, o teatro merece os aplausos ao final de cada repetição diária de sua realização. Hoje comemora-se o Dia Nacional do Teatro, com burocracia, com muito suor e dificuldade, mas com o carinho de quem o faz e de quem o vive, seja no palco, seja na plateia.

Os teatros perderam suas casas em diversos lugares, diminuíram suas bilheterias e a logística de fomento. Antes, colocava-se uma pastinha embaixo do braço e com ela pedia-se o patrocínio, um empréstimo no banco e o ator era visto além do palco, passando pela Praça Tiradentes e a Cinelândia, observando a entrada do público no Paiol e no TBC. Hoje, além de vermos artistas distante da realidade que o teatro deve promover, extinguiram-se aquelas diversas apresentações diárias que eram feitas, as matinês e vem encolhendo-se os cartazes e pautas. Nas quintas-feiras são poucos os espetáculos que engrenam, os letreiros acendem-se entre as sextas e os domingos, raros com ingressos populares e para manterem-se disparam os preços de suas entradas.

Discutem-se diversas origens para o teatro, dentre elas os rituais primitivos, as contações de histórias, jogos, danças e imitações. Porém, no Antigo Egito, uma apresentação sobre Osíris e Ísis, por volta de 2500 a.C. deu o aval para o teatro. Esses espetáculos eram de um alto teor sagrado, divino, como tudo naquela época. A política hoje ainda tem muitos lapsos disso, e a cultura, por exemplo, é um dos campos que sofrem com essa administração inspirada pela demagogia de instituições religiosas. A Grécia, portanto, sairia na frente em suas imensas arenas, endeusando Dionísio, para o Teatro, e representando tragédias de Aristóteles, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. As comédias nasciam para traduzir a inquietude dos mais pobres, sendo eles o público destas apresentações. Aos mais ricos restringiam-se às tragédias. Aristófanes e Menandro pautariam as primeiras comédias e no rosto dos atores vestiam-se as máscaras mitológicas para facilitar a visão do público e exaltar as expressões dos textos. Plauto e Terêncio destacaram-se como comediógrafos romanos.
Em Portugal, Gil Vicente funda o teatro luso, que chega ao Brasil por meio de sua colonização. Talvez não, os nativos já praticavam rituais, inclusive canibais, que organizariam as primeiras manifestações teatrais. O Padre José de Anchieta escreveu alguns ensaios, de modo a catequisar alguns nativos. Notáveis romances caíram em roteiros teatrais, companhias começaram a ganhar forma e nomes veneráveis nasciam para o teatro brasileiro. José Celso Martinez adentra a história contínua do teatro e Nélson Rodrigues escreve uma das maiores obras das artes cênicas, “Vestido de Noiva”. A censura, do ignorante e repressor Regime Militar tentou engessar a arte em suas grotescas “leis” e perderam para o progresso.

Não sei se progresso é a palavra mais apropriada para ilustrar o Brasil, mas é isso que está escrito lá na bandeira. Assim como “Ordem”, que também está apenas escrito, porque não há.

Eu tenho, por obrigação, e prazer, que destacar uma das mais ilustres personagens da história viva do teatro. Tônia  Carrero estreou no TBC, com “Um Deus Dormiu lá em Casa”, ao lado de Paulo Autran. Hoje ela é a diva, aos 90 anos memória ativa do teatro brasileiro. Assim também, Bibi Ferreira, que encontrei há alguns dias, sobre um salto alto e munida de uma voz temperada a sua juventude. Bibi e Tônia são mitos em plena atividade.
Eu ainda acho que o teatro mereça um status melhor do que o carregado. As carteirinhas de “putas”, como eram registradas as atrizes, substituíram-se pela quase marginalização da arte. Claro, há muito mais respeito, antes as escolas não aceitavam filhos de artistas, Bibi foi recusada no Colégio Sion, por ser filha do imperial Procópio Ferreira. Hoje, utiliza-se o teatro como método educacional. Andam explorando o teatro também como escolas de teatro, e obrigam a ter o DRT, registro artístico. Acho isso ridículo! Tanto bom ator, que nunca precisou de DRT, pois isso não existia, essa coisa de escola de atores veio muito depois, com professores que não precisaram de formação em sua época de atuação. Tanto péssimo ator, com DRT! Em qual escola de teatro que Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Eva Todor, Dercy Gonçalves, Juca de Oliveira, Paulo Gracindo, Ítalo Rossi, Maria Della Costa e tantos outros formaram-se? Na escola diária do palco! Essa história de formação deveria funcionar apenas por uma estética pessoal e não como uma exigência para a profissão, isso é o fim dos tempos!
É muito triste o caminho que tudo isso tem tomado, é desagradável pra nós que fazemos teatro com aquilo que cai à disposição. Suou-se demais para chegar onde estamos e alguns banhos de água fria despedaçam os ingressos das bilheterias. Essas leis de incentivo são uma politicagem burocrática absurdamente irritantes e as verbas governamentais destinam-se às práticas corruptas.

O teatro é lindo demais pra viver singelo, pra mirrar-se em pequenas pautas, em curtas temporadas, em paupérrima bilhetagem, apenas aos finais de semana. O teatro é a mais bela forma de viver outra vida paralelo ao real. O teatro é a palavra movida na carne e osso de um ator, nas batutas do maestro diretor, na ponta do lápis do autor, na incansável labuta do produtor, nas passadas de ferro das camareiras, nas pinceladas dos maquiadores, nas esticadas dos cabeleireiros, no braço forte dos assistentes, na divulgação dos assessores, na silhueta dos iluminadores, na arquitetura dos cenógrafos, no ritmo dos sonoplastas, nas alinhavadas dos figurinistas, na quentura dos pipoqueiros e na contagem dos bilheteiros. O teatro é o grito mais próximo da arte, é o observatório da vida e a medicina da palavra. O teatro é onde opera-se o som, o afeto, o choro, o riso e onde assenta o lindo aplauso de quem aproxima-se do paradoxo.
Tem muito ator subestimando a arte, achando que pode fazê-la de qualquer jeito, tem muita iniciativa privada tratando o teatro com desdém, tem muito curso de teatro usando-o como sede administrativa de poder, tem muito público de celular ligado e fotografando peça sem entender o quanto isso incomoda. Tudo isso é muito fácil de resolver e a palavra de ordem é: respeito!

Recentemente dirigi o documentário que reúne dignos nomes do teatro e da televisão e contam a história do humor nos palcos. “Bravo! A Arte do Humor” foi realizado com o carinho que as artes cênicas merecem, a memória do teatro precisa ser mantida viva em todas as instâncias. Estou organizando um livro de memórias sobre o teatro e conto com o apoio de todos vocês para ampliar essa magnífica arte.
O teatro é a vida em outro plano, é um homem embriagado de uísque cênico, é um tiro de festim, o derramamento de sangue químico, são as roupas que lascam-se em Velcro, é um lar sem a quarta parede, a morte com vida, a angústia atrás do sorriso, o ódio e o amor, a lágrima que derrama-se apenas no palco,  são todos os sentidos de várias existências. O teatro é um registro na memória!
O Dia do Teatro acontece todos os dias, é o ator, o diretor, o autor, a produção, que fazem o espetáculo acontecer todos os dias, o público é um dos mais importantes personagens dessa história. O que não falta é teatro, tem muita gente boa em cartaz, tem muita peça cheia de riqueza.

Vá ao teatro, assim como você precisa ir dormir, ir tomar banho, ir comer e beber!

Assista ao trailer do documentário “Bravo! A arte do humor”:

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Festival de Cinema de Santos celebra centenário do clube da Vila Belmiro


A cidade, que veste-se de uma das mais belas orlas marítimas do Brasil, abriu os trabalhos para a décima edição do “Curta Santos”, o Festival de Cinema da praiana baixada santista, com uma linda homenagem a atriz Laura Cardoso e uma afetuosa e merecida festa ao centenário do Santos Futebol Clube, com a presença de craques imortais e do presidente do clube, Luiz Álvaro Ribeiro.

O Festival de Cinema, Curta Santos, é dirigido por Ricardo Vasconcellos, que deixa clara sua paixão pelo assunto quando trata de toda a produção bem de perto. Sucessivos erros técnicos conturbaram a cerimônia de abertura da décima edição do festival, porém, não desmanchou o brilho do evento.

Um som magnífico calava todo o Mendes Convention Center, na noite da última segunda-feira (17), onde ocorreu a cerimônia de abertura do Curta Santos. O jovem saxofonista, Caio Mesquita vinha dedilhando as notas de seu brilhante instrumento para anunciar o festival de uma das mais adoráveis artes que movimenta-se nas imensas telas de cinema.
O cantor Supla foi o Mestre de Cerimônia da noite e abrilhantou a entrada da atriz Laura Cardoso, que recebeu o troféu Lílian Lemmertz, em homenagem a sua trajetória artística e a notável devoção ao cinema.

Laurinda de Jesus Cardoso, a famosa Laura Cardoso, é, sem dúvida alguma, uma das melhores atrizes que o Brasil faz brilhar em cada trabalho. Desde a década de 50, quando estreou na TV Tupi, atuou por diversas vezes no cinema e presenciou a evolução tecnológica das salas de cinema.
Ainda acho que muita coisa perdeu sua característica, mas o cinema sempre será o auge mitológico da arte. Laura foi recebida por uma apresentação circense e derramava lágrimas de emoção sobre o troféu que simbolizava o carinho dos brasileiros por sua fibra artística.

Os cem anos de um dos mais ilustres times brasileiros, o Santos, foi motivo para que a décima edição do Festival unisse as duas paixões mundiais, o cinema e o futebol. A bola rolava pelo palco, o samba da escola de samba do grupo imperava o ritmo do time que desde 1912 é quem “dá bola”. Luiz Álvaro, o presidente do Santos subiu ao palco ao lado de ídolos da torcida da Vila Belmiro, Serginho Chulapa e Pepe foram destaques da noite. O time é a porta de entrada das maiores estrelas do futebol arte, Pelé e o atual mestre da bola, Neymar, são bustos vivos do clube.

O crítico de cinema, Luiz Zanin recebeu das mãos de Luiz Carlos Merten uma homenagem por sua evidente trajetória no jornalismo.

A cidade que foi um dos primeiros portos de exportação, principalmente do café, no Brasil, hoje é a cidade que desponta o cinema em sua maresia.
Durante essa semana, os curtas escolhidos para disputarem a premiação serão exibidos em salas de cinema por toda a cidade de Santos. O craque Neymar estará presente na próxima quinta-feira (20) na Calçada da Fama de Santos, onde terá seu nome homenageado. O ator Selton Mello também marcará presença no festival.

Toda a programação está disponível no site do evento: www.curtasantos.com.br

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Córtex está para a anatomia à mesma importância que para o teatro


Estreou em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Brasil, o Córtex, ou a Córtex, enfim, seja para a anatomia, para a literatura, ou para o teatro, este brilhante espetáculo saiu do oásis mental de Franz Keppler, foi parar na bela estética direção de Nelson Baskerville ao impagável ator Otávio Martins, produzido com primor por Ed Júlio. O espetáculo acontece num abalo à mente humana, que transpassa essa emoção para nós, o público.

Córtex já tem um título rápido e funciona com o tom daqueles seriados cheios de surpresas, porém com a deleitosa proximidade de acontecer no palco de um teatro.

Franz Keppler com sua mente trabalhada pelo vigor psicológico, rabiscou mais um de seus intensos roteiros para adentrar à transição dos temas antropológicos para a arte. Trocando balas entre o sentimento, o medo, a culpa e a consciência, Córtex lava-se nas águas de um espetáculo solo, que depende constantemente do olhar do público e do ardor e entrega de Otávio Martins.

Ao chegarmos à sala do espetáculo, Otávio já está no palco, trajado por um figurino em off-white, com um corte elegante, notado por uma gravata borboleta e um paletó acentuando o saiote de tule que designa a projeção de sua mulher em seus sentimentos. Otávio caminha pelo palco, travando folhas secas entre seus pés descalços e o chão, atravessando este atrito ao som de pássaros e tropeços do vento em folhagens, ainda sem texto na boca, mas com a fala permanente em seus olhos e no fitar das mãos. 

O silêncio que paira o espetáculo tende a sublinhar as expressões clinicas de Otávio que vão contornando nossas mentes e especulando o que está além do palco.

A mulher daquele homem que emite em suas palavras e em sua memória, é representada por uma boneca branca de pano, sem olhos, nem boca, apenas com o corpo, necessário para que projetemos nela sua representatividade. Com o avanço de um acidente vascular, o cérebro vai ocupando-se de desfigurar o interior e o exterior desta mulher, que espelha sua dor no sofrimento de seu companheiro. O lindo jardim de sua casa agora é o palco de Córtex, num emaranhado cinematográfico de folhagens derramadas umas sobre as outras e de galhos escondendo uma história que ora engana, ora é fiel.
A morte da mulher, fora ou não cometida pelo marido? A especulação de um interrogatório ocupado pelo próprio ator o vincula ao sumiço da esposa, porém em uma outra vértice altera o rumo da história. O sofrimento pelo desaparecimento dela é o grande impacto em seu cotidiano, que já era sofrido com a doença da mulher e parece acentuar com o sumiço de quem perdia o amor na morte, com a lentidão do avanço da doença. Porém, a peça não é uma ronda na doença, é um forte impacto ao sentimento.

Encenando o próprio sofrimento da mulher, Otávio vela os próprios sentidos e a razão de sua existência, sem exumar o carinho e a paixão que por anos dedicou à ela.

Uma cadeira de rodas movimenta a tristeza deste homem que esbranquiça a dor pelo verde musgo do cenário, ao fundo suas memórias são projetadas em imagens de dor, de solidão e de sexo. Todos estes sentidos um dia tornam-se capítulos da história de qualquer um de nós, haja doença, haja saúde. Córtex, para a ciência é a camada externa do cérebro. Para o teatro, hoje, são capítulos da história das cenas de Otávio Martins, pausadamente, amplificadas por um microfone da era de ouro das rádios, para centrar o roteiro num grito do âmago.

O medo, a morte e a solidão são feitos por um monstro, como aqueles de livros infantis. Ele observa, pendurado numa árvore, toda a diligência da vida daquele casal e debruça na cama de ferros brancos, erguida apenas para observar a passagem da vida que finda-se.
Otávio é um ator de imensas dimensões, não só por seu físico tamanho vertical, mas pelo horizontal dote artístico que torna nobre suas cenas. Ele movimenta o cenário e exprime todo o texto pelo físico de seu teatro e o tom grave de suas palavras.

Para a anatomia, o córtex é responsável pelo processamento neuronal do ser humano, estando na parte externa do cérebro. A linguagem e o pensamento são notáveis funções do córtex, deve-se a ele o mérito da evolução da espécie. Vale ressaltar que o aumento craniano dos seres aconteceram devido a necessidade de espaço do cérebro, visto que evoluía a linguagem, o pensamento, a percepção e os movimentos ganhavam novos ritmos. O córtex é composto, aproximadamente, por cem bilhões de neurônios. Falar, movimentar-se, observar, perceber, criar, processar informações e memorizar são funções do córtex, tornando-o nobre demais para ser abalado. Quando ocorre um abalo, sua estrutura desmancha suas funções e atrofia os sentidos que lhe são confiados ao humano.

O Acidente Vascular Cerebral (AVC), por exemplo, é um destes abalos que vão exterminando as funções do córtex, quando atingido. Quando o fluxo sanguíneo é interrompido ao cérebro, por alguma obstrução da artéria que o supre, designa-se um AVC isquêmico, ou quando por uma ruptura de algum vaso, um AVC hemorrágico.
O termo “córtex” surge para a medicina no século XVII, por antes significar apenas o revestimento externo das árvores, as cascas. Na literatura, o termo “córtex” acompanhava-se do gênero feminino, como linguagem poética tinha o significado de invólucro. Desta forma, iniciei o texto empregando Córtex, como a Córtex, por poetizar o roteiro de Keppler como envolvente, e sendo o Córtex, por sua característica psicológica altamente ligada ao sentido poético e anatômico, numa linha tênue e muito bela.

Com um texto tão bem encorpado como este, Nelson Baskerville laça sua direção, bem típica. O Auto-Tune de Nelson pacifica e desespera as atuações de Otávio, sim, são diversas atuações, em que alimentam Otávio num mesmo personagem adestrado de conflitantes sentimentos. Coisa de quem sabe fazer teatro!

Nelson vem puxando uma direção intocável. Aquela boneca branca tem vida pelas mãos de Otávio, ela ganha um sentido indispensável e os movimentos são operados por essas diversas atuações dele enquanto deteriora seu córtex no roteiro.

A iluminação corta o palco e retalha com arte a sobriedade do cenário e não transita em cores, deixando em um tom incrível o espetáculo. O desenho de luz torna-se parte do texto e é emblemático, sob a feitura de Wagner Freire. O homem do clima é o que dá as notas às cenas, isso significa o som que ambientaliza o roteiro, faz-se a regência sonora de Ricardo Severo na produção musical, despindo o cenário para penetrar o timbre dramático de Córtex.

Aquele cenário inspirando a saúde e o abandono tem a notável digital de Nelson Baskerville, ao lado de Amanda Vieira. A estrutura arquitetônica criada é um playground para Otávio evoluir e harmonizar-se como parte daquele meio. Ele veste as linhas de Marichilene Artisevskis, que apesar de tantas consoantes em seu nome, simplifica e ao mesmo tempo enobrece o figurino do personagem.
Ed Júlio é mais uma vez responsável por dar movimento a uma obra de peso. É ele quem ladrilha todo o Córtex, deixando perceptível o carinho e o suor empregado ao trabalho. A Baobá Produções Artísticas também produz o espetáculo, realizado pelo Banco do Brasil, que permite à bilheteria cobrar apenas R$ 6,00 nos ingressos, para assistir a um deslumbre.

Por vezes senti prender-se em meus olhos gotejos de lágrimas que cristalizavam todo sentimento jorrado por Otávio, que fala o oásis de Franz Keppler por meio deste texto, nos movimentos autênticos de Nelson Baskerville. Córtex é capaz de momentaneamente nos emudecer e voltar nosso olhar para o que há dentro de nós. Um amor e seu fim, tragicamente o fim carnal, apenas e dolorosamente, realizado com uma imensa beleza. Isso é Córtex, vestido por uma chuva de folhas secas que nos derrama num leito de histórias e de reflexões, cai em nós, como público, um estalo da realidade. Trate do amor, melhor do que trata-se da própria saúde! Talvez os dois estejam mais próximos do que a ciência e a arte entendam.

Córtex é indispensável para o teatro. Está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, até o dia 4 de novembro. Sextas às 20h. Sábado às 17h e 20h. Domingos às 19h. O valor é atrativo, como o roteiro. R$ 6,00 na bilheteria do CCBB. Foto: Otavio Dias.