quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Gal Costa e a arte de estar entre as maiores

Foto: Nyldo MoreiraEnlaçada por notas centimetradas, encaixadas a dedo nas arestas finíssimas de sua voz. Gal Costa é descortinada enquanto solfeja os espaços oportunos em que as notas de Guilherme Monteiro (guitarra/violão) exalam. O Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, recebeu uma nova ruptura artística, um novo álibi para se delirar com Gal. "Espelho d’Água" vem em época de seca encharcar-nos do passado e do novo. A baiana ocasiona esse choque, quase anafilático!
Gal havia cometido um rompante em sua carreira quando estreou o "Recanto", show dirigido por Caetano Veloso e que imprimia forte personalidade de ambos na música e na levada cênica de todo o espetáculo. Ela vinha incorporada em fibras e irredutível em uma morada construída a quatro mãos. Sem deixar de carregar toda a brutalidade do "Recanto", Gal inseriu a paz dissolvida em sua voz e, ao lado de Marcus Preto, desenhou um novo roteiro para manter os pés no palco. "Espelho d’Água" rebusca canções e parece constituir-se de um tudo novo.
O arranjador desse deserto, em que o oásis é o som, Guilherme Monteiro reveste Gal de uma túnica esvoaçante, cheia de oportunidades de garantir canções quase inéditas. Guilherme cria um elo indissolúvel entre as cordas e a intérprete, como se as duas coisas funcionassem devido à mesma veia. Ele permite que ela acomode a voz num berço seguro.
Nota-se que sobra um facho de ar na voz de Gal devido ao ganho de belos graves que misturam-se com a leveza e o ímpeto dos agudos. Ela e a guitarra aturam-se feitos parceiros congênitos, nos altos e nos baixos.
Foto: Nyldo Moreira
Um repertório histórico e que tortura a intimidade de todos os ouvidos, que faz descer estribilho abaixo a coisa mais bela exprimida por poetas compositores. A abertura fica por conta de "Caras e Bocas", de Caetano Veloso e Maria Bethânia, canção que berra o deleite do conluio de dois mestres. Fragmentos do "Recanto" ainda permeiam o espetáculo e as súplicas antigas do público calam-se, pois sem que precise ser entoadas Gal descasca "Vaca Profana", de Caetano e "Meu Nome É Gal", de Roberto e Erasmo.
Outros títulos atingem o cume ensolarado do show, exímia em capturar o mais nobre dos arranjos, ela enfileira "Sua Estupidez" naqueles mesmos versos de antes. A canção em que Roberto e Erasmo parecem ter se travestido das mais enluaradas mulheres e já ouvido, enquanto compunham, o cristal de Gal lacerar verso a verso. "Negro Amor" e "Tigresa" encontram no timbre entrelaçado de graves e agudos um aconchego irresvalável. Quando toda a beleza já parecia ter estonteado "Tuareg", de Jorge Ben, reelabora e rebusca a Gal do "Recanto", reinventa e torna esfinge a ave de rapina que entoava um dos mais lindos roteiros que já assisti.
"Um Favor" deixou-me ainda mais devoto de que as mulheres da nossa música afirmam-se divas ao cantar Lupicínio Rodrigues.
Gal Costa cantou e canta como só as melhores do mundo podem! A alquimia entre o sutil e o luxuoso esta no tubo de ensaio que ela encaixou nas cordas vocais quando João Gilberto disse: "eis a maior cantora do Brasil". E é!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli gravam a poesia de Fernando Pessoa

Ao piano a poesia de notas vai captando a imagem monocromática que paira a tinta antiquíssima do vídeo, Maria Bethânia sentada ao piano prolonga o suspiro da voz nas pausas dos dedos sobre as teclas. Cleonice Berardinelli ouve com os olhos astutos acima do piano! O levantar da intérprete dá-se à métrica da sonoridade poética de Fernando Pessoa, os homens que nele habitaram, chamados de heterônimos, e aos quais as nobres senhoras dedicam "O vento lá fora". O filme de Marcio Debellian enquadra em linha reta os bastidores de uma aula, que mais parece uma leitura e de uma leitura que mais parece uma aula, confrontando a voz e a poesia de um tempo passado, encontrado em retalhos de papel e despejado em vozes singulares.
O livro-DVD reúne páginas de poesia, imagens em preto e branco e um CD apenas com o áudio da leitura. Uma trinca para aprisionar qualquer apaixonado por letras! Na capa o dedo enriste da professora Cleonice apontado à Maria Bethânia, como o habitual dos mestres ao ensinar. Colorido em escalas acinzentadas de preto e branco, o vídeo exibe uma fotografia impressionante e impecável, trazendo à frente as atrizes que destrincham a literatura visceral de Pessoa.
Há um mundo dentro de cada poesia... há um espetáculo teatral que triunfa generosamente nas gravidades vocais dessas senhoras. Cleonice não poupa o movimento, nem os rompantes. Faz o delírio de cada verso e atenua as métricas repreendendo Bethânia quando modernizava qualquer letra. Bethânia volta e relê! A professora empina o dedo.
O produto que sua Pessoa em um aroma indecifrável foi lançado pela Biscoito Fino, sob o selo da Quitanda e coprodução do Sesc São Paulo. O arsenal alfabético do poeta português vai ganhando linha em uma tábua reta em que as intérpretes debruçam. Em um estúdio as paredes engorduram letra por letra e o projeto torna-se biblicamente um Alcorão. Mata-se uma célula e mil se multiplicam a cada êxtase de pronúncia das escritas do célebre poeta, o meu preferido!
É lindo ver Cleonice interpretando como uma gigante do cinema... seu natural interpretar é uma poesia! Debellian acaricia o filme com as doces, temperadas e rígidas mãos de um maestro. Deixa ao parque a lisura gráfica e o olhar de grafite das intérpretes esbaldarem-se de um mel chamado palavra.
No ano em que a baiana completa 50 anos de carreira, sua imersão à obra de Fernando Pessoa sugere um resgate da poesia nas canções. Algo que não vemos em composições contemporâneas. Maria Bethânia abre os palcos como uma mãe de santo que invoca seus pretos velhos num terreiro e indica uma sucessão de comemorações à altura. Como o "Carcará", que deu-lhe os primeiros verbos na canção e no cenário teatral brasileiro, seus passos galgaram para uma das maiores do País. Desde 1965, quando o Golpe Militar estourava às esquinas culturais, a baiana esvoaça entre os cabelos verbetes musicais invioláveis.
O jubileu da cantora terá início no Vivo Rio, na capital fluminense, com cinco dias de espetáculo, entre os dias 10 e 18 de Janeiro. O show também já está confirmado no HSBC Brasil, em São Paulo, com quatro apresentações entre os dias 14 e 22 de março. Seu último álbum, "Meus Quintais", vai estourar o chão de tanta pisada brejeira e típica de uma mulher "recôncava" nesses espetáculos comemorativos. Neste ano o Prêmio da Música Brasileira, em sua 26ª edição, homenageará Maria Bethânia.
Nas livrarias é possível encontrar à venda o filme "O vento lá fora"!