
Foram apenas três dias de apresentação, até ontem “O Santo Inquérito” do memorável dramaturgo Dias Gomes foi encenado como poucas vezes. O Teatro Escola Macunaíma, na Barra Funda, em São Paulo, organizou um festival, onde inúmeras peças se apresentarão até o final de julho, relembrando nobres textos , e neste meio foi que o intenso roteiro de Dias Gomes ganhou emoção e cena no corpo e na voz dos novos atores.
A peça retrata a inquisição na época de 1750, tendo como cenário épico o estado da Paraíba, onde vivia a lendária Branca Dias, que até hoje não sabe-se ao certo de sua existência, portanto falemos como lenda. A jovem é daquelas que sonham em casar, e o namorado, Augusto Coutinho, já tem pra isso, a permissão de seu pai. Ela era acostumada ao contato com a natureza, vestia-se com leveza e banhava-se sempre no rio. Numa de suas perambulações pelo rio, encontra Padre Bernardo afogando-se, após virar seu barco, onde levava as esmolas da igreja num cofre, ajuda-o e o salva – com respiração boca a boca e ainda oferece sua casa pra descansar e trocar as roupas – Padre Bernardo rejeita e agradece muito pelo gesto, a toma de perguntas sobre sua fé, seus costumes e sua vida. Seu avô era Novo Cristão - Judeu convertido à força, por falta de opção, ou se convertia ou morreria. Branca era incessantemente deturpada pela Igreja, quando passa a ser perseguida pela inquisição. O visitador, que vai à cidade julgar os casos de heresia, mostra sua rigidez e mata o noivo de Branca, o pai dela permite que isso aconteça sem nenhum protesto, enquanto sua filha permanece em sua verdade, com seus costumes, não se abdicando da fé, de sua casta e de Deus, porém a inquisição era severa e cega, parecia preferir a injúria por uma fé completamente desviada do que diz a bíblia, mas era de pessoas leigas que a igreja gostava, isso fica bem claro na peça, pois Branca lia livros de poesia e lia a bíblia em português, quando o latim era o idioma oficial da igreja para manter a ignorância de seus fiéis. Padre Bernardo vê-se envolto pela sedução, imagina-se nas circunstâncias mais íntimas com a moça e a culpa deste estímulo que o circulava afastando-a da forma que a igreja oferecia, ele a denúncia para a igreja que a julga, persistindo na presença do demônio em seu corpo, na sedução em seus atos, Branca Dias é queimada na fogueira.
A direção é de Márcia Azevedo e assistência de Márcio Rocha, o elenco de 17 atores se reveza até que todos participem dos mesmos personagens, por vezes há dois atores contracenando o mesmo personagem. As trocas de roupa são feitas no próprio palco, Branca de vestido, os guardas oficiais e toda entidade religiosa com suas batinas, tudo feito em frente ao público, divido em cadeiras na esquerda e na direita, tendo ao centro o palco, como uma arena. A iluminação ficou a desejar, faltou sensibilidade técnica e artística, quando não há cenografia, precisa-se manter um bom equipamento de luz e ensaios para passagens de iluminação, as entradas dos feixes eram muito secas, logo a luz explodia ao palco, quando deveria vir com leveza. O tom quente da luz dava o clímax à peça, mas esse foi o único acerto técnico do espetáculo.

Falar de humanismo numa peça requer inúmeros cuidados, mesmo tratando-se de atores de oficina, bem como entonação vocal, o que ainda precisa ser mais cobrado destes, na época, em que a história é passada, os corredores frios e as salas de julgamentos ecoavam a voz divina e ríspida dos guardas, os bispos tinham a face sisuda, os ombros recolhidos e as mãos meticulosas. Alguns gestos foram fielmente definidos por alguns atores que encenaram o visitador, porém outros não tiveram a mínima sensibilidade de rebuscar a história e levá-la para seu personagem, está aí também a importância de tomar o personagem a partir da hora que o veste no camarim, o ator precisa ter seu espírito disposto a dar espaço ao personagem. A respiração de alguns estava desarmônica, quando falava-se mais alto, quando alguma fala chamava um tom mais rude, havia dificuldade de se articular frases formais, atropelavam-se palavras e sopros de ar. Neste assunto é que aplaudo o ator Vitor Brunoro, que soube impressionar, e climatizar o ambiente com seu tom de voz, onde neste instante, certamente, o público sentia-se parte desta inquisição, quando assistiam aos berros de um julgamento.
Notava-se que alguns atores prendiam-se até as vírgulas do texto, o que atrapalhava a passagem de uma fala para a outra, um personagem é um homem natural, não é um pergaminho que fala, portanto na arena do espetáculo tem-se que preservar o texto sim, mas não com tanto nervosismo, tampouco com singularidade, é necessário manter a história nas falas, porém recriá-las também. Bom desenvolvimento corporal, feição, os rostos reproduziam os traços da época. A peça impressiona o público, cria a sensação de tristeza e indignação no público, o roteiro é ótimo e bem distribuído. Concentração bem trabalhada, dedicação também tinha, mas faltou um pouco para que as falas, a respiração, o significado que a peça traz, fosse melhor incorporado ao profissionalismo de um ator. Há um grave erro, o de atrasar o espetáculo, com meia hora, cansa o público e exausta o próprio ator. Além do ator Vitor, outros também merecem os aplausos, e certamente se destacarão bem mais cedo, desde o início as atrizes Stella Maris e Bruna Mariani mantiveram a sensibilidade da personagem Branca, tomadas pela emoção souberam colocar aos olhos do público essa emoção, e ao nosso corpo todo o arrepio e dor da personagem.
Não há como citar todo o desenvolvimento de cada ator, até por desconhecer alguns nomes, porém os aplaudo, assim como fiz na apresentação, fica somente o desejo de uma equipe técnica que os leve com mais sensibilidade aos palcos e ensaios mais rígidos para a perfeita encenação com outros personagens.
A peça não está mais em cartaz, porém vale a pena conhecê-la através de textos e quem sabe uma futura nova temporada, basta que o público cobre do elenco e o mesmo queira levar a diante este roteiro.