
Qual
mãe nunca ganhou um presente, ou comprou algo de valor ou não e guardou
enrolado num armário? Vem sempre alguém pra dizer que em caixão não há gaveta e
morto não tem a opção de levar nada junto. Pois, então! Eu já vi isso na minha
própria família e de pronto identifiquei-me. A matriarca deixa as quatro
filhas, um apartamento com uma discreta vista para o mar, algumas antiguidades
e muita história divagando aquela sala. Elas precisam fazer a partilha de tudo,
inclusive do imóvel.
Quem
nunca juntou cupons para ganhar itens em promoções? E será que isso entra na
partilha?
O
velório abre o espetáculo, com um cenário de deixar-nos com o queixo arrastando
no chão. Selma, a tijucana, é daquelas irmãs conservadoras, vive um casamento
tedioso junto a um militar e faz-se de coitada o tempo todo, evidentemente é
ela quem organizou os preparos do velório, que não recebe ninguém, além das
outras três irmãs. Lúcia chegou de Paris, deixou a vida no Brasil, filho e
marido, pra viver uma paixão por lá, ela é a mais velha das irmãs. Regina é uma
mulher esotérica, abusa um pouco mais nas vestes e pensa na vida de forma
liberal, ela chegou espalhafatosa e até bolsada deu na morta. Laura é uma
jornalista, a caçula, intelectual e mais contida, revela sua homossexualidade
às irmãs e tem uma cabeça um tanto mais jovial.
O
cenário, de Beli Araújo, é perfeito, abraça as cenas de forma platônica e
permite que a iluminação encarne às cenas com uma beleza e simplicidade, tal
qual o roteiro. É claro que só podia ser obra de Paulo César Medeiros, no
desenho de luz. Os figurinos de Sonia Soares misturam atrizes às personagens e
nos permitem visualisá-las de forma mais íntima e tudo fica bem a vontade. O
som, sem falhas e com ritmo é de Gabriel D’angelo.
O
roteiro do Falabella é algo tão simples e tão bem pensado, mas parece que veio
despejado de olhares a todos os lados e acontecimentos a sua volta, que
sentimo-nos tão próximo daquela realidade do espetáculo. Digo sentimo-nos, no
plural, porque é audível e visual as gargalhadas e a descontração do público
durante toda a peça. O espetáculo não perdeu sua originalidade e chegou bem
moldado aos dias de hoje. É um humor tão sadio, tão gostoso, sem vulgaridade e
nem insultos ao teatro. Ele dirigiu essas meninas com uma liberdade, que elas
divertem-se em cena como se não tivessem lido nenhum texto e sim parecem
lembrar genuinamente àquilo que foi feito na década de 90.
Arlete
Salles dá vida, novamente, à Lúcia. Triunfal, humoristicamente bela como só ela
sabe ser. Arlete vem com uma comédia suave em seu script, que dá vontade de
passar a noite ouvindo ela contar coisas. Ela nos tira risadas encruadas da
gente. Susana Vieira, no papel de Regina, já é de um riso mais frouxo, fácil,
ela sabe fazer isso muito bem. Gosto muito dela atuando, ela tem uma
experiência que a faz sentir-se em casa num palco. E, na verdade, essa é sua
mais íntima morada. Susana, a atriz, e Regina, a personagem, cruzam-se o tempo
todo, são pessoas únicas, elas emprestam-se uma a outra de forma linda. Thereza
Piffer tem todo seu jeitão de jogar-se por inteira nas cenas, de deixar sua
expressão facial tomar conta do texto e interpretar enquanto a outra fala, isso
é um trabalho meticuloso, que já é natural pra alguém deste quilate. Thereza
interpreta a caçula Laura e, por incrível que pareça, seu jeito mais direto não
esmaece a doçura de uma caçula, isso é um intrínseco do texto e um
subconsciente do personagem. Patricya Travassos merece muitos aplausos em pé,
vivendo a simplicidade e, quase que ingenuidade de Selma, enlaça o padrão que
arrastou-se por anos e anos de uma mulher manipulada, em todos os sentidos, por
seu marido, e leva a carência de seu relacionamento frustrado para as quatro
paredes da partilha entre suas irmãs. Patricya dá voz a uma grande atriz, num
papel que a valoriza no humor.
A
Partilha reúne um trecho de cada família dentro dessas quatro irmãs, elas
brigam, elas amam-se, elas ficam bêbadas e divertem-se com toda aquela situação
que poderia ser para derramar lágrimas.
Um bom humor, que nasce num velório, tem tudo pra ganhar os dentes
abertos do público, e este espetáculo segue uma linha íntima, entre a realidade
e o humor. Um bom humor!
Num
artigo que escrevi há algum tempo eu cito A Partilha como a cartada mais
elegante e escancarada do teatro brasileiro, não descartando tudo que já foi
feito com mérito. Mas, o espetáculo é de uma identificação tão próxima, que
fica difícil não usar adjetivos ligados ao texto. Na época em que nasceu, na
década de 90, A Partilha não tinha um nome comercial, nem imaginava-se o êxito
que poderia alcançar. O espetáculo acabou seis anos em cartaz, com montagens em
doze países e encenadas simultaneamente, com diferentes elencos, em São Paulo e
no Rio de Janeiro. Inspirações e continuações foram geradas pelo virtuoso passo
de Falabella.
O
espetáculo tem uma moral importante, tem uma discussão indispensável. No mesmo
artigo em que falei sobre A Partilha, também citei a importância do riso, que é
mencionada na peça junto a Henri Bergson, usei de suas teorias para
exemplificar exatamente a proposta de A Partilha. Para Bergson, rimos daquilo
que nos substituí, daquela realidade que vivemos e não notamos, por fazermos
vistas grossas ao nosso próprio cotidiano. Está exprimida essa minha interpretação
sobre o riso, para Bergson, no texto e na direção de Miguel Falabella, com a encenação
de quatro leões das artes cênicas.
Ser
um novo sucesso 20 anos depois é um teste de ferro, bem passado por eles.
Eu
acho que nunca vão conseguir fazer algo parecido com A Partilha. Mas, que façam
outros humores, é importante continuar!
A
Partilha está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo. Os ingressos
custam entre R$ 80,00 e R$ 120,00. Podem ser comprados na bilheteria do teatro
e pelo Ingresso Rápido, na internet. A peça acontece nas sextas às 21h30. Aos
sábados brilhantemente às 19h e às 21h30 e aos domingos às 18h. A temporada é
prevista até o dia 25 de novembro.