terça-feira, 11 de setembro de 2012

Equus é a incansável montagem da psiquiatria no teatro


Demorei tanto a escrever sobre esse espetáculo por necessitar de entender com mais amplitude a grandeza de Equus para os dias de hoje. Sua última montagem não está muito distante, fora em 2004, mas o texto é um encontro brutal com qualquer época e torna-se sempre cabal para as relações destrutivas de uma família psicologicamente desarmada. Equus, de Peter Shaffer, está em cartaz no Teatro Folha, em São Paulo, criando um elo entre a suposta loucura de um menino, na pele formidável de Leonardo Miggiorin e o psiquiatra bravamente retocado por Elias Andreato. Tudo isso é desembrulhado na impecável direção de Alexandre Reinecke.

Ao terminar a peça eu perguntava-me como Leonardo Miggiorin deixaria toda a transe de seu personagem, pois é algo que parece impossível. Leonardo parece vestir-se da carne de Alan e imagino que enxugue suor de sangue para levar o auge catatônico da mente do personagem para o palco. É simplesmente notável a atuação do ator, abro o texto o aplaudindo pela fúria balanceada à nobre delicadeza.

Nobreza também reveste Elias Andreato, se perguntarmos em qualquer canto em que haja arte ouviremos falar de Andreato como pilar genuíno do teatro. Este homem dirigindo já é um monumento histórico, atuando é o encontro da perfeição com a generosidade. Elias entrega-nos um teor linear de feição, sua estrutura física mantem-se o tempo todo tal qual a de um psiquiatra consumido pela rotina de seus clientes. Um hospital psiquiátrico é a forma mais exaurida de sustentar a vida, para quem consome-se das histórias diversas de pacientes, um psiquiatra caleja seu olhar. Elias Andreato, enquanto interpreta Dysart, é este olhar drogado da vivência do cérebro alheio e dos berros de exaustão daquele cercado fatídico da psiquiatria.
Quando em uma das minhas críticas, acercada aos temas da psicologia, encontrei uma frase, em minha própria mente, para exemplificar a mente de um paciente psiquiátrico, pois nem todos podem ser chamados de loucos. Até porque a loucura talvez não seja uma doença, talvez um estado parasitando o cérebro. Eu dizia na crítica que, a loucura pode ser a morte da mente, porém jamais da criatividade. As insanidades incitam ainda mais outros sentidos e tornam-se motivos de quem a vive, nela encontram histórias e reescrevem a trajetória comum que seguiria um humano. A fuga da realidade e dos fatores distantes do discernimento da sociedade geraram o embrião do texto de Peter Shaffer, ao ouvir um amigo contar-lhe sobre ter cegado cavalos. Antes de contar-lhe toda a história, na Inglaterra, o amigo morreu. Restou a Peter encontrar os cacos em sua própria mente para escrever uma intensa obra que tornaria um grito de alerta e um observatório humano para o teatro.

O espetáculo jorra o sofrimento do jovem Alan num texto repleto de encontros mentais e de comportamentos transversos. Alan é filho de um comunista, que o proíbe de ver televisão, e de uma professora com a religiosidade acentuada, que assiduamente prega-lhe as discussões credulamente incontestáveis da Bíblia.

Alan desperta um intenso apelo sexual por cavalos, em especial a apoteosar Equus, um cavalo viril e de trotes firmes. No ofício de manter limpas as cocheiras e pentear os cavalos, Alan aproxima-se ainda mais de sua excitação e executa um crime instigado pela sensualidade de uma jovem, involuntariamente, porém com uma insistência volúvel. A jovem tenta despertar a volúpia de Alan, que vê-se cercado pelo comportamento do pai, que era um homem de integridade e fere sua moralidade quando é pego pelo filho num cinema pornô. Alan denota a liberdade, quando montado num cavalo e a exalta quando livra os cavalos das correntes e chibatadas dos jóqueis, imagem relacionada, por ele, à paixão de Cristo.

Alan, após cometer o crime de cegar seis cavalos, aparentemente sem um propósito, é levado a um hospital psiquiátrico, onde encontraria a tenacidade do psiquiatra Dysart. Este médico jamais poderia livrar Alan deste sofrimento, o tormento o consumiria para toda a vida. A barbaridade de Alan, era o próprio Alan. Dysart esmiúça, encontra em Alan um desafio e observa sua própria vida por indagações do jovem. O crime é brutal, Alan não.
Os entroncamentos familiares afloram sempre um personagem dentro da figura mais frágil de um lar, isso é evidente nos reflexos da sociedade de todos os tempos. As ansiedades, as nuances comportamentais e os devaneios sexuais de jovens captam a desvairada educação retalhada de um pai e uma mãe. A repressão e a imposição são gatilhos para o assassinato mental de um filho. As superproteções e a ridicularização da infância, apelidando tudo que está ao alcance da criança e tratando-a como um objeto frágil, despertam  a queda do processo de evolução mental.

A mãe de Alan é interpretada por Patrícia Gaspar, numa atuação louvável, em que a personagem despe-se da independência feminina e cabisbaixa o olhar para a imposição de um homem, falsamente embalsamado por seu moralismo comunista. Sua religiosidade é a cegueira da realidade e a presunção de uma família completa. Jorge Emil, vive o pai de Alan, encabeçando um texto formidável e a busca pelas fagulhas perdidas neste caso. Emil é dono de uma interpretação sóbria e vigorosa. Mara Carvalho também está no elenco, imponente e brava. Léo Steinbruch, Fernanda Cunha e Bruna Thedy enlaçam o grande elenco, que traz ainda as firmes cavalgadas de Gustavo Malheiros. É ele quem interpreta o cavalo Equus e ferozmente encontra os pés com a tacada no chão, acirrando o som da patada do equino e seus espasmos musculares.

O elenco não incha o palco, pelo contrário, adentra harmoniosamente à iluminação de mestre assinada por Paulo Cesar Medeiros, cores quentes perfuram o cenário de André Cortez que vai evoluindo ao palco arriscando ambientes que aguçam a imaginação do público, permitindo-nos ampliar o campo de visão imaginária para o propósito intelectual da direção de Alexandre Reinecke.
Reinecke elabora um encontro de cenas no palco preservando a cena passada e a cena futura, despejando nas arestas do cenário que torna frígido o palco, num propósito sensacional de equilibrar o hospital a uma prisão mental, onde a loucura acaba estacionada na morbidez de um local como este.

O figurino de Renata Young permite tracejar por diversas épocas, reinando o espetáculo por todo o tempo. É incansável o tema sexual, da repressão, da imposição, da religiosidade e da moralidade, e os figurinos são importantes contornos da personalidade de cada personagem. Logo, a despojada veste que Alan cobre seu corpo é despida e o alto do espetáculo está nas expressões e no discurso físico de Leonardo Miggiorin. Nu, ele rodeia os olhares do público longe da vulgaridade e muito íntimo do descontrole mental e da exacerbação da liberdade, seja mental, seja física.

Equus é a tradução para o Latim, de cavalo. Equus é a batida da ferradura no magma do texto de Peter. Dysart foi o psiquiatra interpretado por Paulo Autran. Alan foi o jovem interpretado por Daniel Radcliffe, o ator que viveu Harry Potter. Sua interpretação em Equus causou intenso burburinho aos ingleses, por ficar totalmente nu ao palco. Miggiorin rege-se da mesma astúcia, sem atrair o público por este motivo. Isso é a aproximação bela da psiquiatria com a arte.
Peter coletou a história apenas no histórico do crime, sua fonte faleceu antes de contar o que realmente ocorreu, porém cercou-se de fatos divulgados num jornal para fermentar a história de Equus. Justamente essa palavra, Equus, alucinadamente aproximando duas vogais, causava ainda mais apreço para Alan.

Num aprofundamento à psicologia do roteiro é possível criar uma relação de Equus ao caso do Pequeno Hans, caso clínico de Freud. A mãe de Hans já tinha sido paciente de Freud e seu filho seria o próximo a encontrar-se às suas teorias. Hans era o próprio Édipo, porém ainda amava seu pai, apesar de encontrar, desde muito criança, na mãe sua fonte de sexualidade. A libido de Hans sempre fora muito aguçado e ele exercia excessos de contatos com seu pênis. Numa repressão da mãe, ao dizer para o garoto que o levaria para um médico decapitar o membro caso tornasse a tocá-lo, causou em Hans um intenso transtorno psicológico. O garoto via a irmã ao tomar banho e notava a ausência do mesmo aparelho sexual, imaginava ela ter tido o pênis cortado, isso afligia-lhe ainda mais. O pai era médico e andava sempre de branco, Hans tinha o pavor do branco, pois era a veste dos médicos, os quais cortariam seu pênis caso o tocasse para masturbar-se. A ameaça da mãe rondava o menino com frieza. Um cavalo branco chegou a ser o espanto de Hans, pois imaginava sua mordida arrancar-lhe um membro. Desta forma criava inúmeros encontros ao seu medo. Hans foi curado, por intermédio de cartas correspondia-se com Freud, o notável pai da psicanálise.

A história de Equus encontra-se em lapsos com a história de Hans, ao aproximar-se da repressão vinda da mãe e o desespero que parte da figura paterna. Ainda, caracteriza o cavalo como símbolo deste medo. Os medos, as fobias, são chaves de fenda que desparafusam a normalidade cerebral.

Eu não poderia deixar de falar da monumental trilha sonora dirigida por Tunica, que vai lapidando as emoções do texto e batendo aos olhos do público cenas de impactos imediatos.
Alan chega muito próximo da esquizofrenia, embriaga-se de diversas peças da psiquiatria e como uma peça de xadrez coloca livros e estudos da psicanálise em xeque. Infortunado, desorganizado e catatônico, Alan vê-se incurável. A criatividade de um homem insano adentra a sua inteligência e a torna gigantesca. O psiquiatra encontra-se nas indagações de seu paciente e mostra que o estudo da mente não é o propósito da cura, mas das organizações da vida. Nem todos podemos violar o destino biológico para uma suposta normalidade. A psicanálise, muitas vezes, é apenas um estudo e não uma cura. Elias Andreato evidencia isso com maestria em seu olhar e a regressão histórica de seu personagem, que observa-se, antes mesmo de conseguir curar seu paciente.

Um cavalo, como um da raça Lipizzaner é o alvo coadjuvante de toda a história, que brilha aos olhos de Alan a brancura de uma mente que viverá eternamente coberta de nuances. Alexandre Reinecke traz uma lápide da história do teatro para a atualidade, Equus sempre será uma atualidade.

Escrevi demais, porém não seriam possíveis palavras sucintas para um trabalho de árduo teor cênico.

A produção de Isabel Gomez e Claudio Erlichman, realizado pela Jornaleiro estão em São Paulo, no Teatro Folha, quartas e quintas, às 21h. O espetáculo ficará em cartaz até o dia 27 de setembro, com os gentis valores entre R$ 10,00 e R$ 20,00.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Incrível Dr. Green discute com humor o caos da cirurgia plástica


Está em cartaz no teatro União Cultural, em São Paulo, a comédia que discute um dos mais recorridos temas atuais. Recorridos no sentido de, salas lotadas em clínicas de cirurgia plástica. A explosão de cirurgiões plásticos, quase que mágicos, nas mídias, deu origem ao texto, cheio de boas sacadas, de Gisela Marques, com a leitura e a dinâmica direção de Ricardo Severo, aos holofotes da produção de Ed Júlio, “O Incrível Dr. Green”, enche o palco de Botox, peitos, glúteos, beleza e pavor.

Com as luzes apontando ao cenário de Laura Carone, muito bem ambientado e como recortado de uma revista, daquelas que retratam os modelos das clínicas cirúrgicas que enchem suas receitas pelas tarjas bonificadas dos dourados e platinados cartões de crédito, os atores começam a desfilar seus pomposos e impecavelmente alfinetados figurinos, da obra de Elena Toscano. Gilda, personagem de Ana Andreatta, é a funcionária que serve o café e indica a sala a ser tratado o paciente. Ana executa quase que um teatro físico, com um frescor delicioso e de deleite aos dentes dispostos à sorrir. Não há quem não encontre um riso frouxo pela plateia, ao entrar Gilda, consumidora assídua das sementes de Jussara, que prometem desenhar belas silhuetas nas cinturas da mulherada.

Quem vive Jussara é nada mais, nada menos do que Nany People, nem consigo imaginar outra pessoa executando a personagem. Nany vestiu Jussara de um saco de risadas e embolsou qualquer erro cênico pra si só. Não há uma entrada sua no palco que não desvele uma gargalhada daquelas que puxam inúmeras outras. Jussara vende sementes, e faz isso na recepção da clínica Afrodite-se. Adélia, interpretada pelo refinamento de Gabriela Alves, é uma das despreocupadas com qualquer coisa que gire em torno de si, a não ser a busca por eliminar a gordura que não existe. Ela consome esporadicamente as sementes de Jussara, o que não a faz ser maior consumidora do que Gilda, que ganha qualquer cena em que estiver presente por sua mudez cheia de movimentos irreverentes, causados pelo excesso do uso das sementes.
Adélia é uma mulher elegante, de um andar cheio de ar no peito e com a ponta do nariz apontada para o defeito visível apenas aos seus olhos. Ela é o arquétipo da mulher atual, no caso de muitas, que preocupam-se ao olhar da outra mulher sobre o que veste e aquilo que está por debaixo da veste. No sofá da clínica também aquecem-se as nádegas recauchutadas de Márcia Castanho, vivida por Nyrce Levin. Márcia é uma atriz, modelo e cantora da década de 80, época em que ficaram todas as partes reais de seu corpo, na atualidade da peça, sua soberba está por cima de todas as obras barrocas e cubistas do Dr. Green, que a remoldam sob os ossos falidos desta rica em decadência.

Amanda Costa é o brinde do humor, interpretando Karina, uma jovem que foge ao padrão atual de recauchutagem e da beleza natural, assombra a imaginação dessas mulheres que aguardam ser atendidas por Dr. Green. Karina tem defeitos visíveis, mesmo por cima da roupa, onde lhe faltam seios e sobra quadril, desmanchando o imenso nariz que tira o ar de qualquer um. Todas elas buscam algo em comum, a beleza que vem e vai, tal qual o fole de uma sanfona.

Alguém teria que organizar o falatório de quatro mulheres que escondem suas personalidades verdadeiras e as deixam escapar pelo furo que as agulhas cirúrgicas cometem, a não ser a inexistência de som na voz de Gilda, a copeira que vive como um passarinho envolto de sementes submersas em serotonina, mas que tem que ser imediatamente polida por seus exacerbados e cômicos movimentos, impulsionados pela substância que a toma. Roberto Rocha, e suas calças apertadas, cintilam um homem conhecedor da sensibilidade e da robustez de uma mulher, no papel de Geraldinho, ao qual o diminutivo denota com suavidade sua simpatia. Geraldinho é o recepcionista que não perde nenhum programa de Dr. Green, que faz sucesso na televisão. Retrato fiel da realidade.
Neste brinde do humor, encontra-se o gás na pele de Nany People e sua esfuziante forma de fazer humor. Ela entorna o ritmo do espetáculo e traz nas pregas de suas coloridas roupas um elenco disposto a descolar o Botox de quem assiste à oficina mecânica humana.

Logo no início, quando a ribalta ainda nem esclarece o que há por vir, as mulheres entram mascaradas por uma pele que não lhes pertence, pela forma imaterial que as compõe. Numa dança violada nos escombros de peitos, nádegas e barrigas, Ricardo Severo, o grande diretor, que pincela por debaixo de seu cinematográfico bigode uma ninhada de talentos acertados por seu bisturi, traz uma referência ao roteiro de Almodóvar, do filme A Pele que Habito, onde tenta-se reconstruir o corpo de uma mulher que se foi, e isso é genial.

Gabriela Alves é o gole do brinde desta comédia, que desce deslumbrante ao brilho de sua personagem, um brilho maquiado, mas um brilho. Vejo um pouco de exagero na impostação de seu tom, mas acredito que haja muita mulher tentando equilibrar-se em saltos como os de sua personagem Adélia. Mas, é lindo ver Gabriela desfilar no palco. Amanda Costa conquista por sua ingenuidade inicial, abordando o texto com um humor simples e o despejando a um final triunfal. Márcia Castanho, no olhar esnobe de Nyrce Levin, dotada de um papel fenomenal e digno da arrogância e prepotência das desvalidas da verdadeira finesse , regala o texto com rigor e o interpreta com ar de dama das palavras e dos movimentos, esse é o cálice do brinde, é a taça, que trinca quando ela canta, numa voz despreparada, mas que dá para encarnar ao vencimento da carreira de sua personagem.

O dueto cênico de Roberto Rocha e sua incumbência de mediar o falatório desse amontoado de quebra-cabeças corpóreos, com nome de mulheres,  ao lado de Ana Andreatto, desenham a caricatura básica do humor, que é fazer rir. Apesar de faltar a Roberto um trago de naturalidade, de desprender-se do papel e levar aos traços de seus olhares um pouco mais de leveza ao interpretar.
A iluminação pontual de Wagner Freire lambuza o texto de Gisela Marques com maestria. Gisela pontua a importância da discussão de temas contemporâneos e acaba traçando uma moral importante em seu roteiro. Entrega às mãos de Severo toda sua grandeza para alimentar as batutas de Ed Júlio em um conjunto produtivo impecável. Acredito que o som poderia estar um pouco mais alto, os atores cantam, músicas muito bacanas, mas o áudio do acompanhamento está mal distribuído na acústica.

O excesso das cirurgias plásticas, de fato, tem dizimado algumas famílias, tornando seus personagens factuais irreconhecíveis. Ontem via-se uma avó, hoje nota-se o autorretrato do Frankenstein. Onde cabiam lábios, arreganham-se as figuras daqueles hot-dogs americanos que sobram salsichas pelas bordas. Os olhos, que outrora piscavam, aprontam-se para a diligência quase fechados, onde os pés de galinha viraram canja. Essa é a exacerbação do uso de bisturi e dos medicamentos para o caminho da então e prometida beleza. Em contrapartida há cortes que destacam a beleza, desprovidos de exageros, mentiras e ficam orçados num justo investimento. Seja à prazo, à perder de vista, por nota promissória, em compra coletiva ou no cartão as clínicas pipocam os edifícios e os corredores onde cantarolavam os açougueiros e as consultoras daqueles pavorosos cremes e perfumes.

A beleza tem um preço, por vezes pago pelo tenebroso resultado final, ou, quem sabe, um belo acerto.

“O Incrível Dr. Green” fica na imaginação do público, seja ele aprisionado na estufa dos silicones de seu tórax, e na torneada panturrilha que lhe mantém em pé nas horas de cirurgia, ou na estranheza de um homem que é belo para quem é feio. O espetáculo está em cartaz no Teatro União Cultural, em São Paulo, até o mês de novembro. Os ingressos custam entre R$ 30,00 e R$ 40,00. Sextas às 21h30, aos sábados às 21h e aos domingos às 19h30. Tomo parte de Ricardo Severo e companhia, além da fabulosa Baobá Produções Artísticas, para convidar-lhes ao espetáculo. Sem medo de identificarem-se!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Bibi Ferreira, o maior concerto da vida artística de volta a SP


Bibi traz sempre um frio na barriga em qualquer espectador que a espera entrar ao palco, assim as crinas em cerdas dos violinos eram espetadas pelos arcos dos violinistas, das teclas do piano saiam poesias, dos sopros a vida, a bateria equilibrando os graves e os agudos e as cordas acompanhando a regência firme do maestro. Um brilho apontando às cortinas pretas e aos olhos do público, enquanto uma fagulha de voz caia ao palco, vestindo um azul do céu ao anoitecer, Bibi Ferreira pisava os saltos na madeira para sentirmos seu perfume musical. Ela está em São Paulo com a mais longa vida artística e sem dúvidas, a mais bela.

Abigail, doce Bibi! Uma luz e o desenho em cores flechava o palco pelo olhar técnico e sensível de Paulo César Medeiros, enquanto a cascata de músicos recitava seus instrumentos, o maestro Flávio Mendes erguia o indicador para o lado esquerdo, e ao centro uma orgia vocal lembrava a Bibi de todos os tempos. Ela é a mesma, a eterna filha de Procópio e Aída, é a meninota que acordou no palco aos 24 dias de vida, e a jovem senhora que não se cansa, e nem deve se cansar de descortinar os palcos.

Irreverente, linda e imponente! Simples, quando deixa subir às cordas vocais a letra de Noel no “Brinde a Traviata”, de Verdi. Ela é, com todo respeito, uma maluca com toda sanidade.

Ninguém seria capaz de fazer o que Bibi faz na posse de um palco. Ninguém, com toda sua preguiça e seu genuíno e sublime dote artístico, faria da ópera uma canção brasileira para o samba. Bibi faz renascer o espírito das canções que pairavam sua juventude, nos acordes mais elegantes da música clássica. Faz a gente rir, lacrimejar e bailar com a cabeça.

Ela não para de trabalhar, de divertir-se levando ao mundo toda sua capacidade artística. Agora está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo, pela direção nobre de João Falcão, por quem estreito tremenda admiração. “Bibi. Histórias e Canções” é o encaixe que faltava no colar de pérolas trazidas do fundo do mar. Enquanto reescreve sua própria biografia no palco, com delicadeza e muito bom humor, Bibi canta e encanta.

Abigail Izquierdo Ferreira, vulgo, Bibi Ferreira, é a maior expressão artística em movimento atualmente, e desde 1922, quando veio ao mundo pelo colo carioca de Procópio Ferreira, ao ventre ilustre de Aída Izquierdo, a mãe que lhe ordenaria os passos por anos e anos. Na companhia de teatro de Abigail Maia, Procópio levou Bibi, aos 24 dias de vida para acompanhar seu trabalho, quando ela nem sequer poderia imaginar o que seria. Na falta de uma boneca, no espetáculo “Manhãs de Sol”, Abigail pegou ao colo quem seria batizada com seu mesmo nome e levou-a para o palco de fronte a sua primeira plateia.
Falava espanhol quando aprendeu a declamar as primeiras palavras, entrou para o Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando ainda grafava-se Theatro, com “H”. Foi rejeitada pelo Colégio Sion, nas Laranjeiras, por ser filha de artistas. O pai foi um grande ator, um dos maiores. A mãe, bailarina. Em 1941 estreou profissionalmente nos palcos, em “La locandiera”, quando interpretou Mirandolina. Três anos depois fundou sua própria companhia de teatro, que contou com Cacilda Becker, Maria Della Costa e a formidável Henriette Morineau. Na época, Bibi disputava os textos e os direitos com Eva Todor, as duas engrenariam uma longa estrada pelo teatro. Bibi chegou a fazer 8 peças num só ano, quem faz isso hoje?

Na década de 50, Bibi trouxe dez dançarinas americanas para o Brasil, além de mais 20 profissionais contratados e colocou em cartaz o espetáculo “Escândalos 1950”. Alguns dias após a estreia, no Rio de Janeiro, o Teatro Carlos Gomes, onde estava em cartaz, incendiou e o fogo consumiu todos os cenários e figurinos da companhia de Bibi. A simplicidade de sua origem permitiu-a receber do então dono do Copacabana Palace todos os figurinos que restaram do Cassino, que fora fechado junto a outros pelo Brasil, por decreto do Presidente Dutra. Suntuosos figurinos de revista foram para as mãos de Bibi, que recuperou-se após alguns anos do episódio que tentaria inibir seu sucesso.

Bibi foi fazer sucesso em Portugal, teve declives, mas em 1960 mostrou-se a eterna princesa do teatro, quando interpretou o musical “My Fair Lady”, ao lado de Paulo Autran. Na mesma época foi apresentadora na TV Excelsior.

Bibi trouxe para o Brasil a forma leal de interpretar musicais e exaltou ao mundo sua peculiaridade visceral de atriz e cantora, coisa que ela nega, mas ela é cantora sim e das melhores. Chega a ser um ouro, onde não mede-se o quilate, porque é raro demais pra que tenha-se o verdadeiro conhecimento. Em 1970, Bibi dirigiu “Brasileiro: Profissão Esperança”, de Paulo Pontes, com Maria Bethânia e Ítalo Rossi, que em seguida foi remontada com Clara Nunes e depois interpretada pela própria Bibi. Atuou em “O Homem de la Mancha”, também com Paulo Autran, e impôs com austeridade e doçura “A Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes.

Bibi um dia será filme, livro, peça de teatro, busto, nome disso e daquilo. Ela é a história viva do mundo artístico. Bibi conheceu Noel Rosa, no filme “Cidade Mulher”, de Humberto Mauro, e ele ensinou-a como cadenciar um samba em sua voz. Muito nova já era capaz de ganhar o mundo com sua voz e cena. Bibi ama a palavra, e isso é notável.

Com um sorriso especial, Bibi desponta a felicidade de cravar os pés no palco e ainda ondular o corpo no formato do tom da canção. Quando era nova, mais do que ainda é, Bibi presenciava as reuniões do tio, que trabalhava na embaixada argentina e trazia para casa os grandes cantores de tango da época, além disso, ouvia os discos que Procópio colocava para tocar em casa. Em cima das óperas recontava as composições brasileiras, e lembra tudo isso como uma menina no palco.

Bibi resgata a musicalidade que perdeu-se pelo tempo, faz rastejar pelo teatro uma voz que vai do grave ao agudo com uma facilidade incrível, e orna ao palco com uma beleza estonteante. O teatro seria um simples gênero sem Bibi Ferreira.

Bibi viaja pelos musicais, pelos fados, pelas óperas, pelos sambas e por sua própria vida. Um álbum de fotografias diluído em palavras. Ouvi tudo com os olhos cobertos de lágrimas e a boca escancarando sorriso.

No “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini, Bibi encaixou diversos sambas, de Lamartine Babo, Ary Barroso, Luís Iglesias, Braguinha, Davi Nasser e deita a canção no “Carinhoso”, de Pixinguinha, sobe o tom da Orquestra, e o italiano exalta o verdadeiro Fígaro.

Quando pensei que um veludo acariciava os meus ouvidos, era Bibi alongando a voz com um sorriso incompatível com qualquer soprano, e que só completa a ela. Samba de breque, a história do corisco Lampião, nuns acordes arrastados e impecáveis e a Marcha dos Soldados, de Fausto de Gounod, com a poesia de Caymmi, em “Maracangalha”. Bibi é uma “repoeta”, que reescreve a poesia no deslumbre de seu timbre. Bibi é o repique de uma Orquestra, e o violino de uma bateria. Apenas ela pode ser o inverso do original, pois o torna belo.

Não poderia faltar o francês mais bem falado que há neste solo, Bibi solta a voz para as canções de Edith Piaf, e traz a rosa espetando sua voz que declara a evidência de seu sucesso. Audaciosa, ela já foi à Portugal cantar Amália, à Argentina cantar Tango e à França, Piaf.

Ricco Antony traz uma produção glamorosa, e com cheiro de média e pão com manteiga para servir à Noel. Flávio Mendes permite passar pelos olhos de João Falcão o brilho do sax para a tampa do piano, que verte à Bibi o brilho mais lindo da noite, de todas as noites que o teatro ainda há de viver.
Nilson Raman, com uma saudável voz, enlaça Bibi num abraço e tasca-lhe um lindo beijo que toca os lábios, que outrora cantaram a embalada canção que animou o repertório de Piaf, “À quoi ça sert l’amour”, fazendo a altiva voz da então princesa dos musicais, hoje a rainha e diva do palco, agradecer ao público com um acenar de mãos digno de Miss Universo, e na doçura simplória de quem cantou sambinhas.

É possível ver que Bibi leu nota por nota do espetáculo, pois é possível sentir cada canção nos tocar, com graça, romantismo e irreverência.

Bibi é o marco de todas as épocas. Bibi é a Belle Époque latina. É única e indispensável!

O espetáculo “Bibi. Histórias e Canções”, está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo, sextas e sábados às 21h, e aos domingos às 19h, até o final de setembro, ao valor de R$ 120,0. Em novembro ela vai cantar em Nova Iorque, e isso é incontestável e belo. Mais belo ainda é ver Bibi incansável no nosso palco!

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sergio Dumont e um som que sai do oco violão


O sotaque de um vestígio chiado retrocede à década de 60, enquanto definia-se a suntuosidade presidencial da casa da república depondo-se da Guanabara, e Sergio Dumont encontra-se em seu violão carioca e o timbre sussurrado, ecoando pelos espaços entre as cordas e os acordes. Mas, voa-se imediatamente para um sul de qualquer verde, mato, serra e água doce que corre, é um significado que encontrei pras canções de seu álbum, que estampa seu nome e a mineira Tiradentes, em casebres, ladeiras e a pauta das faixas musicadas.

Com a licença de um sax soprano a “Vida”, primeira faixa, nasce nas teclas de um piano e todo o acorde que acompanha, como se cheirando café e bolo de fubá, esperasse a novela das seis começar só pra ouvir a canção que abre. A maioria das faixas do álbum são composições de Dumont.

O CD é “Sergio Dumont”, por ele próprio, com as participações diamantadas de Flavio Venturini e a saudosa voz de Jane Duboc.

Não é pra ouvir e decorar, nem vamos sair cantando quando alguém pedir a referência de uma canção pra ouvir no pôr do sol. Aliás, eu nunca gostei de pôr do sol, acho o entardecer tão triste, indefinido entre dia e noite. As canções de Dumont são um cisco poético batidos no violão, é um instrumento de destaque, que romantiza tudo que toca no álbum.
Às vezes parece que vai surgir um bolerinho, mas esmaece, e o tom do arranjo vai caindo para uma serenidade monótona, de repente, sobe outra vez. Ficaria bonito um bolero nesse álbum, é um som que ganhou tanto espaço dentre as vozes brasileiras, que posso imaginar Sergio Dumont cantando um com uma doçura perfeita.

“Beija-Flor” é um encontro com a faixa seguinte, “Vila Rica”, que entroncam uma beleza instrumentada e a voz sorrateira e aveludada de Dumont.

Enquanto abre-se o livreto do CD, encontram-se imagens da cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, absorvendo as canções para uma realidade interiorana, de céu azul e pés na terra. Pelas janelinhas azuis salta o gingado da voz de Dumont, variado na calmaria da canção mineira. Nem sei porque, mas é um encontro sossegado e aconchegante.

Às vezes sinto falta de um pouco de volúpia nas partituras, e uma letra mais sonorizada. É bacana compor pensando na sonoridade final da letra. Porém logo vem “La Vie En Rose”, de Edith Piaf, e envolve no veludo carioca de Dumont, um francês cheio de sortilégios e com uma afinação venerável. Falando em francês, as músicas de Sergio Dumont são ambientadas no famoso restaurante Maxim’s, em Paris, de propriedade de Pierre Cardin. Por lá andava Santos Dumont, que deixou a marca da sola de seus embicados sapatos a sorte para a entrada de Sergio e sua brasileira canção, após anos de sua peregrinação de amor à França.
O “Tema Número 1” encerra o álbum com um gostoso encontro de instrumentos, e amarra o laço que antes trouxe a saudosa Jane Duboc numa explosão de timbre em “Realeza Vulgar”, azeitando a canção com a finesse de sua voz.  Antes, ainda, Flavio Venturini desmonta o Céu de Santo Amaro, que cadencia uma de suas mais belas destiladas da voz no eixo musical, para dividir o microfone com Dumont em “Sonhei Demais”, letra que configura um perfeito e suave duelo entre os cantores.

Sinto falta de mais variação no álbum, de uma quebra de ritmo, mesmo havendo uma boa exploração dos instrumentos, mas o CD segue numa quebrada só. Acredito que isso tenha ficado mais para uma época de Bossa Nova, onde era a cadência dessa linearidade das canções. Sergio Dumont tem uma voz criativa, íntima e que passa pelos lábios antes de explodir pelas partículas do ar. O grisalho da barba cerrada e do cabelo batido impõe um respeito, e recortam uma fotografia sépia na paisagem.

Siga em frente, dividindo entre as cordas e a voz o cisco poético de suas canções! E obrigado pela dedicatória na capa do CD, ele está bem acompanhado, ao lado dos menestréis da seresta, entre a bala na agulha de Cauby, Gal, João Gilberto e Bethânia. CDs que recebo e enfileiro para sempre escutá-los.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Daniela Mercury traz o trio elétrico da Bahia para o Via Funchal, em SP


Na mais fiel expressão, o trio elétrico de Daniela Mercury chacoalhou o Via Funchal, bela casa de shows paulistana, no último sábado (4). Com o gingado africano e o cangerê baiano que só ela tem, sucessos e promissoras canções embalaram três horas de um show que qualquer artista gostaria de fazer. Mas, só ela sabe cantar e dançar com o compasso perfeito e uma afinação esmerada pelos orixás que encontram-se nos batuques africanos de “Canibália”.

O álbum “Canibália: ritmos do Brasil” é o mais recente cartaz colado pelo mundo de Daniela Mercury, lançado pela Som Livre, em CD e DVD.

Com o público em pé, o palco escuro clareou-se sob o vestido branco e o samba que permeava as arestas do Via Funchal. Daniela entrava espalhando a mistura entre os mestres Ary Barroso, Dorival Caymmi, Baden Powell e Vinícius de Moraes, em “Benção do Samba”, que espalha o cheiro de arruda na poesia do batuque baiano e carioca das canções “Na Baixa do Sapateiro”, “O Samba da Minha Terra” e “Samba da Benção”, quando numa última palmada nos atabaques africanos esmaecem os nobres poetas para o anúncio do tambor mulato em “Preta - Eu sou Preto”, de Daniela em parceria com Seu Jorge, e “Sorriso Negro”, sucesso na voz de Dona Ivone Lara.

As canções caem ao público como as contas enfileiradas na guia de Nanã e sua imposição sobre o ibiri. Soam como o som da corrente água de Oxum e o brilho do sol dourado n’água. Correm pelos pés aquecidos do público como a quentura da lava de Xangô e cortam os extremos do palco tal qual a espada de Iansã. Os olhos de Daniela não param de brilhar um instante sequer, e são raros brilhos, chamados lágrimas, que moram no olhar de quem ama a música com essa devoção.

“Canibália” é uma tribo de peles e couros empoleirados por quem coleciona boa música e a ínfima relação entre a cultura e o som, e a antropologia da fé e dos movimentos. Daniela, enquanto canta “Iluminado”, de Vander Lee, tem o vestido, que outrora embalava sua voz em “Como Nossos Pais”, de Belchior, colorido pelas cerdas e a aquarela de Iuri Sarmento. A canção vai despejando tinta pela brancura e desviando pelas curvas do corpo de Daniela, formando corações ao sotaque barroco e iluminando cores que salientam a impecável instrumentação sorrateira da música.
Pelas abstratas ladeiras do Pelourinho, tradicional centro histórico de Salvador, cidade natal de Daniela, salteava o cheiro dos abarás e acarajés e a fritura do dendê à flor de Daniela Mercury nas cores do sucesso de “O Mais Belo dos Belos”, e suas braçadas invocando as batutas do Olodum, que ganhou destaque em “O Canto da Cidade”, álbum de 1992 que repercutiu ao mundo. Era possível também, sentir-se entre a Barra e Ondina, famoso circuito do carnaval baiano à beira-mar, quando do álbum “Música de Rua”, renasce “Por Amor ao Ilê”, girando saias e gingando as pernas dos filhos de santos nas ladeiras que cheiram ondas de mar.

Para esfriar os passos e recolher o suor da pipoca paulistana e o giro do mundo que reunia o público no show, Daniela rasgou a música para dar entrada à literatura de Jorge Amado. Ao lado dos atores Bruno Belarmino e Fred Steffen, em cima de uma cama que centrava o palco, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” ganha a cena. Com o galante de Teodoro, o farmacêutico de microfibra e chapéu branco, e as caídas largadas de Vadinho, com peito nu e as ceroulas arriadas. Ao toque brutal da sensualidade, Daniela penteia os pelos de Vadinho com suas pernas e eleva a quentura da cama, que abrigava uma alma e um corpo às margens de uma mulher.
Daniela Mercury aos oito anos já fazia dança. Aos treze decidiu que seria cantora, após deslumbrar-se com um show de Elis Regina. Na década de 80, foi vocalista da Banda Eva, triunfando hoje, por sua trajetória o título de rainha de seus ritmos. Ela chegou a ser vocal de apoio na banda de Gilberto Gil, e em 1991 gravou seu primeiro álbum. Em 1992 no projeto “Som do Meio Dia”, no Museu de Arte de São Paulo, o MASP, sem imaginar sua potencia artística, reuniu mais de 30 mil pessoas ao “Canto da Cidade” e revirou prêmios e os olhos de contemplados músicos brasileiros e do mundo todo. Como embaixadora da UNICEF realiza em parceria com o Fundo, o Instituto Sol da Liberdade, que itinerante, realiza pelas entranhas do Brasil um projeto de valorização das culturas nas comunidades que mais sofrem com os números de desenvolvimento.

Não quero pautar boatos que sapatearam a carreira de Daniela, eu gosto de música, de cultura e som. Ela não é política. Ela é artista, sua responsabilidade está para a música, e não para o pessoal.

Com “Música de Rua” e o “Sol do Sul” o Brasil hasteia a bandeira de seus verdes campestres e o azul que brilha o céu no mar, no banho do ouro de Oxum e os minérios que fortalecem a voz dessa imensurável artista. “Rapunzel”, despeja suas tranças e arrasta todo mundo para a corda de “Maimbê Dandá” e as saudosas marchinhas de carnaval. Daniela via-se num trio elétrico, para o qual compôs “Trio em Transe”, e lá de cima do palco fitava as palmadas de aplausos do público com o coração em festa.

Num chute ao gol, Cafu e Pelé encontram-se na inédita canção com Daniela “Cheia de Graça”, e Carmem Miranda, com dorso de seda, colar de bolas e as dobradas de pulso que embrenhavam os balangandãs e sua carioca baianidade portuguesa solta a flautada voz numa belíssima gravação, onde Daniela Mercury acompanha cantando “O Que é Que a Baiana Tem?”, de Caymmi. O telão colore ao fundo e salpica a iluminação avermelhada que desce o veludo de Iansã para as dobradas de Daniela que veste às mãos o mato verde e o símbolo de eru para rabiscar o palco na gira de “Oyá por Nós”, parceria sua com Margareth Menezes.
Os bailarinos brincam na seriedade do balé africano e embalam os corpos como se fossem elásticos vivos, e o kuduro de Angola bate os joelhos do público todo, inclusive os meus, que não ficariam de fora. “Quero Ver o Mundo Sambar” arrasta os pés dos sambistas natos e enquadra o álbum “Canibália” como um mito dos ritmos brasileiros, que nascem diariamente nos pés do povo e no sangue da raça latino-africana que encandeia a cultura deste país. O show é um índio canibal, que nutre-se de tons, timbres, evoluções e gestos. Daniela é um encontro entre os atabaques de Ketu e Jeje, e a imponência rítmica de Mãe Cleusa, que deu-lhe a voz de Nanã.

Sem as luvas azul e vermelha, e despida da marquise do MASP, Daniela Mercury deixa que o público cante “O Canto da Cidade”, enquanto revive à dança de seu próprio eixo os vinte anos de seu notável sucesso. Sem Daniela no palco, o público despede-se da cantora, que sabiamente foi dita por Beth Carvalho: “esta mulher trouxe o samba de volta para o Brasil”. Quem dera o mundo fosse a voz de Daniela! Quisera qualquer cantora ter o swing e o som dela. Ninguém canta e dança na mesma voracidade. O carnaval viveu seus dias de glória no Via Funchal, graças ao saboroso projeto “Mulheres do Brasil”, que ainda trará para a casa Alcione, Margareth Menezes, Gal Costa, Céu e Ana Cañas. Essas são cartas, que qualquer bom baralho não tem.
Daniela, continue a viver a música! Seu som é raridade. Seus rompimentos rítmicos encarnam templos da música voltando a ouvir graúdas composições e marcam gerações. Ela não é do axé, nem do samba, nem da cantiga popular. Ela o toque africano, de pele branca e sangue negro, na música total do Brasil.

Daniela Mercury trouxe o Pôr do Som, que mistura ao toque de sua voz ao balanço das águas do Farol da Barra, em Salvador, realizado todo primeiro dia do ano, para São Paulo, e encontrou seu trio da Barra e Ondina, no Campo Grande dos paulistanos.