Li, outro dia, a respeito do repertório de Bethânia durante esses 50 anos que passaram, era uma crítica bastarda... dizia que a baiana enfeitava o mesmo do mesmo em todos os seus shows. E qual seria a dificuldade em entender gêneros?! Bethânia é dos batuques... quando sai deles enluara-se com canções de Chico Buarque, por exemplo, que a derruba em uma delicadeza incomum. O resgate de canções é a coisa mais sublime que um intérprete pode fazer para a música. Bethânia, com uma banda sempre simétrica, redesenha o ritmo dessas canções e costura uma a uma criando histórias nos palcos.
Em um espetáculo quase sem pausa entre as canções, divido em dois atos, com um recheio instrumental feito por Jorge Helder (contrabaixo), Túlio Mourão (acordeom e piano), Paulo Dafilim (violão e violas), Pedro Franco (violão, bandolim e guitarra), Marcio Mallard (cello), Pantico Rocha (bateria) e Marcelo Costa (percussão)... Bethânia exprimiu quase tudo de si. Dividiu suas interpretações em textos de Waly Salomão, Fernando Pessoa, Clarice Lispector e até os de sua autoria. Entre as ligeiras viradas de acordes a intérprete soletrou: "agradeço aos amigos que gostam de mim. Apesar de mim". E reverenciou o público: "agradecer aos senhores que acolhem e aplaudem esse milagre", o de cantar, e assinou embaixo.
"Abraçar e Agradecer" é uma reunião de poetas e compositores que transcende à própria carreira de Bethânia. Há um bom tempo eu não me deparava com um trabalho tão belo. Como se nada fosse ensaiado... mas, com a impressão de que tudo estava milimetricamente ensaiado. Nada fugia da natureza santamarense, de como se a baiana sambasse no quintal de casa.
A overdose de Caetano Veloso incluiu a abertura do show, xerocando a intérprete para todo o resto do espetáculo. "Eterno em mim", de 1996, antecedeu uma leitura assinada por Bethânia. Ainda das mãos e da mente do irmão, "A Tua Presença Morena", com um arranjo carnavalesco de um samba rasgado, "Tudo de Novo", "Nossos Momentos", "Eu e Água" e "Motriz" saíram da intimidade vocal da cantora, como se Caetano a ciceroneasse com a viola. Algo parecido com o que aconteceu no documentário dirigido por Andrucha Waddington, "Pedrinha de Aruanda", em que Dona Canô divide o quintal com os filhos e com o mundo!
Chico Buarque entrou luxuoso no repertório do show com "Tatuagem" e "Rosa dos Ventos", que marcou como digital a carreira de Bethânia. Chico é uma das quedas da cantora, e sua total entrega para essas canções evidencia isso.
Dori Caymmi também está imperativo no espetáculo e veste o olhar de Bethânia com sua herança para compor. Rolando Boldrin, Tom Jobim e Chico Sá também apitam nesse terreiro. Boldrin é lembrado com "Eu, a viola e Deus", com viola caipira. Tom, com uma versão íntima de "Dindi". Chico com as digitais que deu a Bethânia. É o grande biógrafo da cantora neste momento. "Agradecer e Abraçar" também foi a canção de Gerônimo e Vevé Calazans, que fez a Abelha Rainha espetar minuciosamente seu ferrão em nós, o público.
"Não me arrependo de nada", foi um dos versos entoados na canção que eternizou Edith Piaf. Sim... Bethânia encarou "Non, Je ne Regrette Rien", de Charles Dumont e Michael Vaucair. A canção levada até Piaf e que simbolizou toda sua vida, também caiu na lábia de Bethânia, que interpretou o francês com seu jeito baiano e pontual. Ela encarou a canção de frente e finalizou flechada por luzes brancas e os braços pro alto, como quem reverencia o tempo.
O samba de roda não veio latente como de costume nos shows de Bethânia, mas veio espalhado no vasto roteiro. Desta vez, Roque Ferreira ficou com a fatia sambada do espetáculo. Suas composições fizeram o vestido que transava vermelho e dourado em Maria Bethânia rodar como das mais legítimas baianas que encaram a ladeira do Pelô. A beleza teatral de tudo isso vinha trajada pela direção de Bia Lessa e Guto Graça Melo. A banda foi orquestral e respirava cada canção com alegria. Era muito contemplativa a maneira com que eles rodeavam Bethânia para enchê-la de notas.
O figurino ficou divido pelos dois atos. No primeiro, Bethânia vestiu o dourado de Oxum, e saudou-a no segundo ato com a "Oração a Mãe Menininha", de Dorival Caymmi. A introdução da música veio a cappella, como se aos pés da Mãe reverenciasse algo, intimamente. Ainda sob a assinatura de Gilda Midani, o segundo figurino era vermelho e dourado, tal qual o de Iansã na composição de Roque Ferreira, "Vento de Lá".
Algo muito interessante foi o chão de LED armado sobre o palco e que ocupava quase toda sua extensão. Imagens de rosas, água, mato, estrelas e desenhos criavam uma atmosfera a traduzir esse jubileu e a desenhar a interpretação de cada canção. Esse chão era inclinado, o que fazia a pisada da cantora ficar ainda mais enrijecida e cúmplice do palco. Cantar sobre uma ladeira é coisa de um bom baiano, de raça. A vista do alto é sublime, a valsa de Bethânia sobre as imagens é celestial. A iluminação de Binho Schaefer riscou o palco como um pintor ama suas telas pincelando-as com critério.
O texto já está ficando grande demais... é melhor encerrar assim, no ápice. Bethânia fez isso, voltou ao ápice, do qual nunca saiu. Terminou o show traçando no rosto uma interpretação visceral de "Cárcara". E voltou sorridente para o bis, sem deixar dúvidas de que cantaria "O que é O que é", de Gonzaguinha.
A tradução dos 50 anos de carreira de Maria Bethânia foi magistralmente resumida. O show é uma resenha de um Deus!
O show segue no próximo final de semana, no HSBC Brasil. Mas, os ingressos já estão esgotados.
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