O céu parecia querer lavar as
ruas cariocas horas antes do show que levaria ao espaço o Circo Voador. Como
não resistiu, a chuva ensaboou os ladrilhos no quase início de madrugada do Rio
de Janeiro. Como em antigos festivais, o público chegava cantando, apoiava-se à
beira do palco quem podia, no mezanino algumas pernas balançavam com a
ansiedade de quem nunca ouvira Gal. O típico atraso gelava as barrigas,
enquanto o calor insistia em tornar o ambiente caseiro. Gal espiava o público
que a ovacionou no primeiro passo de volta ao Circo. Na direção de Caetano
Veloso, aconchegado à voz de Gal atrás do palco, o show “Recanto” dava início
para uma inclusão histórica. Sem saber mais como agradecer, Gal resolveu
dar-nos a primeira canção, ao barulho do público que foi calando-se com “Da
Maior Importância”. A partir daí todo mundo cantava junto com todo mundo, como
um coral, elevado pelas cordas de Bruno di Lullo e Pedro Baby, além da bateria
acústica e mpc mil de Domenico Lancellotti.
Estou colecionando shows de Gal
Costa, cada vez há um rebolado diferente, um sorriso mais largado e um carinho
com as notas ainda mais íntimo. Ela canta sorrindo e isso é sublime!
Gal é desenhada pela luz e calça
suas curvas em cada lance de notas que o trio exalta à sua magnífica voz. A
maior cantora do Brasil reuniu um público jovem invejável pra qualquer
espetáculo do auge de sua carreira. Pra quem diz que Gal já teve seu auge não
sabe o que é “Recanto”. Na verdade ela nos faz confundir auges e passo a
descartar essa de auge com ela. Ela é o grande trunfo da música brasileira.
Monumental!
As salpicadas eletrônicas
rejuvenescem Gal e a embelezam num ritmo delicioso. Estávamos em pé, restou-nos
dançar. A beleza de “Tudo Dói”, com a marola bossanovense, o sorriso com
lágrimas nos olhos de “Tudo Dói” e toda a dramaticidade que a canção contracena
com Gal, os pulos e dedilhadas de “Divino Maravilhoso”, que faz jus ao contexto
do espetáculo. Tudo é divino maravilhoso.
A evidência de que Gal não tem
medo de enfrentar o tempo foi engajar “Recanto” no Circo Voador e mais ainda, intitular
o espaço de “Disco Voador”, de fato ela levou pro espaço, no melhor dos
sentidos, fomos ao delírio.
O tempo pra ela é o menor dos
desafios, o maior deles é a música e ela tira de letra. É notável um dos mais
lindos romances que conheço, entre Gal e a musicalidade. Ela é nova, traz um
show cheio de reformas, de tons escuros que deixam brilhar sua história
passeada nas letras. Gal faz-se um sopro no asfalto quente quando “Folhetim”
nos cai para relembrar aqueles acetatos que exibiam seus carnudos e vermelhos
lábios.
O público fervoroso às vezes era inconveniente
e atravessava as canções com os berros, com os elogios. Mas, as mãos de Gal
acenavam para o controle e sua voz emudecia uns e causava furor em outros.
O suor escorrendo pelo rosto e dobrando-se
ao colo transpirava a grande Gal que renasce suas canções, que vive Caetano,
Jorge Ben, Waly Salomão, Jards Macalé e Caymmi.
Gal é símbolo de voz e de vida,
tem a expressão da raça musical brasileira e os traços mais belos marcando suas
cordas vocais. Gal desfila um show ecumênico, distribuído para o sábio público
e mostra que funk é um som bonito em “Miami Maculelê”, e que a música
eletrônica é de seu pleno domínio quando “Neguinho” passa na malandragem em
letra pelo público.
Quando “Baby” traz de volta o
tropicalismo, “Vapor Barato” inserta a deslumbrante “guitarrada” de Pedro Baby
em solo na canção. São os aplausos mais quentes do show. “Meu bem, Meu Mal”, “Força
Estranha” e “Modinha para Gabriela” tornam o show saudoso na despedida e Gal
bate o fio do microfone no palco com a força de sua preciosa carreira.