quinta-feira, 31 de maio de 2012

Wagner Moura desafina e público salva tributo à Legião Urbana


Vão dizer por aí que jornalista é carne de pescoço, pessimista, extremista e o que mais puderem tirar do diabo e colocar na gente. Mas, espera! Não dava para deixar passar batido, nem a preocupação, muito bacana, por sinal, da MTV em homenagear Renato Russo, nem as falhas que ocorreram no show, que aconteceu nos dias 29 e 30, no Espaço das Américas, em São Paulo. O público, entusiasmado, cantou muito e salvou o tributo.

Eu fico sempre receoso com esses tributos, porque em grande parte saem um cambalacho. É gente emocionada, o cantor chora, vira uma missão impossível. Wagner suou no palco, tirou fôlego até de onde não tinha. A voz não estava preparada, ele tentou por diversas vezes igualar seu timbre ao de Renato, engrossando a voz bem perto do microfone, mas logo vinha um grave riscando um agudo ao mesmo tempo, e ficava tudo estranho. Microfonia também foi uma das falhas, além de instrumentos desafinados e o descompasso da guitarra de Dado Villa-Lobos, que cheio de marra sapecava os dedos nas cordas.

Achei bacana o palco, iluminado por bastões e com uma projeção inteligente no teto, aprofundando a direção cenográfica. Wagner entregava ao público a missão de cantar, em algumas músicas, e foi bacana pra poupar nossos ouvidos de alguns de seus estragos vocais amplificados pelo microfone.

Não tem como dizer que foi um ensaio público, porque nos dois dias os erros se repetiram, o mesmo abuso de algo que parecia tornar-se impossível à cada música que sucedia o fracasso da anterior. Mas volto a dizer, o público estava tomado de emoção, isso contou. A intenção também é bacana, sei o quanto o Wagner é fã do Legião e do Renato, mas até então, muita gente boa é. O cara é bom ator, mas como cantor vai entrar pra tributo também.

Dado disse que Wagner é um homem de coragem, e eu tenho que fazer das palavras dele, as minhas. É preciso realmente coragem.

Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos fizeram um dueto bacana em “Geração Coca-Cola”, com a gaita de Clayton Martin, dessa vez sem Wagner. “Andrea Doria” é a canção preferida do ator, evidente que não foi suficiente para uma boa apresentação, que aconteceu com a participação de Fernando Catatau. Sabe quando aquela pessoa que canta mal pra caramba sobe no palco do karaokê afim de estilhaçar o estribilho da gente? Então, definido está!
Dado Villa-Lobos tomou a guitarra em mãos para relembrar os sucessos da Legião, Marcelo Bonfá na bateria, Rodrigo Favaro no baixo, Caio Costa fazia os arranjos e o teclado, enquanto Gabriel Carvalho mandou no violão. Andy Gil, do Gang of Four, e Bi Ribeiro, dobraram no palco com “Damaged goods” e “Ainda é cedo”.

A Legião Urbana teve suas origens em Brasília, no ano de 1982. Com 16 álbuns, foram vendidos mais de 20 milhões de cópias pelo mundo todo, e ainda continua liderando o catálogo da EMI. A Legião formava o quarteto sagrado do rock brasileiro, junto ao Barão Vermelho, Titãs e Paralamas do Sucesso. Acho até que deveriam ter chamado os caras pra cantarem no tributo. Renato era um cara filosófico, profundo em suas composições, não preocupava-se no tempo que duraria a melodia no palco. A banda estourou em todos os cantos, e parou de fazer shows em 1995, com uma apresentação em Santos, no “Reggae Night”. Mesmo com o fim dos shows, um álbum foi lançado, “Uma outra Estação”, e poucos dias após o lançamento de “A Tempestade”, penúltimo álbum de estúdio, em 1996, faleceu Renato Russo, por consequências da AIDS.

O show em tributo à Legião Urbana acabou com “Será”, com o timbre de Wagner descendo uma ribanceira. Até aqui, nenhuma novidade né? Wagner afirmou: “Eu não vou esquecer nunca isso”! E eu pergunto: “quem de nós esquecerá?”

Muita gente deve estar descordando de mim neste instante, mas eu sou jornalista, jamais me atreverei a homenagear Pina Bausch dançando balé num tributo. Acho que tributo é homenagem, e não distorção. Cada um precisa aturar seu limite. Wagner é um bom ator, sua performance no palco foi espetacular. Ele chorou, deitou, cantou olhando pro teto, interpretou canções jamais arranjadas no palco pelo Legião. Tem um monte de menininhas aborrecidas comigo. Mas entendam, ele pode ser ídolo, ser o galã do cinema, porém ele não passará disso para nenhuma garotinha histérica. Foi bacana o esforço, mas agora eu é que faço um tributo ao Wagner, calando-me! 

terça-feira, 29 de maio de 2012

Angela Ro Ro e Ney Matogrosso, Angela Maria e Cauby Peixoto fazem duplas inesquecíveis no palco


Foi difícil parar quieto neste final de semana em São Paulo, entre um dia e outro, de agradáveis noites, o Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, recebia Angela Ro Ro e Ney Matogrosso num encontro orgástico. No Teatro Fecap, o mais nobre dueto da música brasileira encontrava-se para relembrar 60 anos de sucesso, Angela Maria e Cauby Peixoto eram aqueles jovens seresteiros outra vez.

Angela Ro Ro e Ney Matogrosso 

Quando tudo parecia muito calmo, um furacão inquieto tomou conta do palco do Teatro Paulo Autran, era Angela com seu habitual preto e os tênis que lhe permitem percorrer o espaço todo. Assumidamente de cabelos brancos, sua idade nem parece chegar perto da realidade, a realidade dela é uma outra bem similar daquela disposição da época do grupinho com Cazuza pelas ruas do Rio de Janeiro, agora um pouco mais branda, também, sem Cazuza, mas com a doce presença de Ney Matogrosso, uma emulsão de voz e deleite numa coisa chamada canção.

Para Angela, nada mais que um piano eletrônico com todas as bases prontas e sua irreverência contavam o elenco do show, logicamente que Ney entraria depois, como seu convidado. Ela é esfuziante, conta histórias, faz seu público todo cair às gargalhadas, e mais do que isso distribuí aos cantos do teatro uma voz que ainda não perdeu seus graves e a rouquidão de uma tênue perfeição. Angela sapecou sucessos que foram cantados juntos a plateia, “Tola foi você”, “Came e Case”, e “Fogueira”, todas de sua autoria, esta última foi gravada por Maria Bethânia. Ela também mandou “Ne me quitte pas”, de Brel, e mostrou que sua voz é a mesma, e empunha uma masculinidade afeminada, típica de seu jeitão pitoresco de ser ela própria, e que convenhamos, é incrível. É claro que senti falta de uma banda enchendo aquele palco de notas, não gosto muito de bases prontas. De Caetano Veloso, ela cantou “Escândalo”, e “Compasso”, de Mac Cord e Ro Ro.

Do outro lado do palco um piano dava o tom de sua história, desde os cinco anos de idade Ro Ro tira notas de um daqueles. Enquanto o regime militar comia solto no Brasil, ela estava em Londres, onde trabalhava em restaurantes e aproveitada para cantar em boates. O sucesso começou mesmo na década de 70, quando ela volta ao Rio e gravou seu primeiro disco, depois de dar canjas em boates cariocas. Sua estreia aconteceu no Teatro Ipanema, ao lado do inseparável piano. Ainda em 79, emplaca duas canções suas nas rádios, e aos pés do sucesso do primeiro LP, pela PolyGran, Bethânia dá a voz a “Gota de Sangue”, composição de Ro Ro. Ela então ganha o título de “A Sensação do Ano”, pelo Jornal do Brasil. Ela nunca negou sua preferência por mulheres, e faz disso um assunto leve, como deve ser. Angela é uma artista de temperamento forte, o que torna mais impactante cada vez que cala o silêncio com sua voz. Namorou Zizi Possi, e chegou a ser acusada de agressão à cantora e então parceira, e a ela dedicou “Escândalo”.  Do palco, Ro Ro diz: “puta merda, esqueci de convidar o Edy Star”. Esse é mais um de seus amigos da cambada boa da música do lado B, que pra mim significa a sigla de lado bom.

Mas era Ney Matogrosso que dividiria o palco naqueles três dias de show em São Paulo. Deu saudades daquele tempo, e voltamos a ver os dois amigos mirados pela luz teatral e som do piano dedilhado pela própria Ro Ro. “Balada da Arrasada”, composição que conta a irônica e translouca vida de uma amida, vem acompanhada de “Não há Cabeça”, com Ney debruçado sobre o piano, fazendo-o de dueto, às entradas de Ro Ro. Quando ela deixa o palco, ouve-se uma das mais belas vozes da música, casada a um homem performático, ator da música. Ney cantou músicas de seu último álbum, “Segredo”, de Herivelto Martins e Marino Pinto, “A Bela e a Fera”, de Buarque e Edu Lobo, “Nada por Mim”, de Herbert Viana e Paula Toller, e enfim “Beijo Bandido”, título deste último espetáculo, cravam a impecável participação de Ney.

Ney Matogrosso traz no nome suas origens, chegou ao estouro do mundo da música com o grupo “Secos e Molhados”, onde vinha transfigurado e envolvendo seu corpo num ritmo que só ele tem. Quando, então sozinho lançou o disco “Água do Céu – Pássaro”, repercutiu, mesmo que tardiamente, tendo em conta seu evidente talento, por toda a crítica brasileira. Ele chegou ao Rio de Janeiro e foi trabalhar num teatro como assistente de iluminação. Naquela época havia apenas um canhão, e era com isso que mirava-se os artistas no palco, e alguém tinha que segurar aquela geringonça, este era Ney, que hoje desenha uma das mais belas iluminações dos palcos musicais. Ele até vendeu peças de artesanato em couro, feitas por ele, chegou a ingressar na aeronáutica, morou em São Paulo e já na década de 2000 gravou seus dois explosivos e belas artes movimentadas por notas nos álbuns “Batuque” e “Inclassificáveis”, dos quais tenho grande admiração.

Ney e Angela foram escurecendo palco o deixando mudinho após cantarem juntos “Amor meu grande amor”, de Ana Terra e Ro Ro. Essa música é uma poesia cantada, é visual e tácita, ao mesmo tempo sente-se, e com a ajuda de duas tão diferentes vozes, e juntamente harmônicas, só se pode sair do teatro com vontade de continuar amando o que verdadeiramente é música. Antes de despedir-se mesmo, Ro Ro soltou a voz em “Malandragem”, de Cazuza e Frejat. Aplausos e mais aplausos, nada mais para artistas completos. É essa a melhor forma de se agradecer.

Angela Maria e Cauby Peixoto 

Uma outra Angela fez brilhar o palco de um outro teatro, e é gostoso ouvir música no teatro, sinto como se assistisse atos de óperas populares, belíssimas. Angela Maria, toda de branco, não vou poupar elogios, vou até chamá-la de um anjo da música. Ela parecia! Um anjo que fala:  “porra, colocou meu brinco já? “, ao receber ajuda para devolver à orelha o brinco que caiu. Ela brilhava mesmo, nos agudos que lhe restam, e na parceria do eterno amigo Cauby Peixoto, que foi cantar na gravação de seu novo DVD.

Foi num tom tranquilo, que Angela descobriu a voz, por trás das cortinas do Fecap, em “O Portão”, letra de Roberto e Erasmo, que emana versos que intitulam seu novo álbum, e a firmam neste atual cenário da música. Com os olhos brilhando, a fálica e bela boca vermelha, “Maldito Coração”, e “Lábios de Mel”, de Waldir Rocha, foram cantados por ela e pelo público, como se fosse antes, quando Angela era a rainha da música, título que eu ainda lhe preservo, mas há quem prefira “tchu tcha tchu tchu tchu tcha”. Não seria ela, se não cantasse Tom e Dolores Duran, “Por Causa de Você”, música que me tira do silêncio, e lágrimas dos olhos, ainda mais ao ver tal dama à nossa frente com 60 anos de carreira mostrando seu amor pela música. Tem muita gente se dizendo músico, que está evidente o curto caminho nessa brincadeira que eles chamam de “arte”, e que infelizmente parece estar nas mãos da velha guarda da música.

Angela Maria é da época de ouro, quando se cantava nas rádios e vivia-se da música pelo imenso prazer. Era odiada nos programas de calouros, pelos outros calouros, pois era ela quem sempre levava. Sua boca tremia às canções de fortes agudos, e fazia-a solfejar como um sabiá de timbre alto. Em pensar que essa mulher foi operária, tecelã. À Angela não bastou sonhar, teve de deixar de ser Abelim Maria da Cunha, para Angela Maria, a Sapoti de Getúlio Vargas. Ângela Maria era o nome que tinha nas rádios, para a família não descobrir quem era, e Sapoti foi o fruto que inspirou Getúlio à sua doçura. Ela gravou mais de 114 discos, foi sabotada por assessores e empresários, sofreu com maridos, tentou até suicídio. Essa gigante se meteu no cinema, cursou teatro e hoje é a referência de grandes intérpretes brasileiros. Em 79 apaixonou-se por um rapaz de 18 anos, com quem está casada até hoje, ele, é claro, mais velho do que era. Afinal, a vida passa, a música não envelhece, mas a gente sim. Angela foi perdendo muito de seu teor vocal, mas jamais deixou de ser o maior mito feminino da música, é assim que eu a vejo. Dalva de Oliveira era sua rival, elas disputavam as fãs, hoje não há quem não goste de Angela, e quem não a relacione com a amizade eterna de Cauby, com quem gravou memoráveis sucessos.

Cauby Peixoto foi considerado o Elvis Presley brasileiro, o chamado rei, Roberto Carlos, o coroava na época em que Cauby assinava os grandes contratos e destilava seu charme para o delírio das moças, e sua voz impecável e que colocava a qualidade musical do Brasil no topo. Foi ele que gravou o primeiro rock por aqui, levou nossa música para outros idiomas, como a “Maracangalha”, de Caymmi, recebeu aos 25 anos de carreira presentes imortalizados em sua voz, como “Cauby Cauby”,  de Caetano, “Bastidores”, de Buarque, “Oficina”, de Jobim, e “Brigas de Amor”, de Roberto e Erasmo Carlos. Cauby levou ao mundo o que poucos músicos conseguiram levar, a verdadeira composição brasileira. As moças corriam quando ele chegava às cidades com seus shows. Minha vó conta suas insistências, em Cachoeira, na Bahia, para o pai levá-la ao espetáculo que traria o homem dos cabelos cuidados, os anéis que tanto brilhavam, e os famosos blazers que vestiam a voz mais famosa das rádios. Ele chegava suntuoso, e por onde passava deixava mulheres rasgadas, porém nunca assumiu relacionamentos, e denomina-se um homem assexuado. Seu prazer está na música.


Angela e Cauby encontraram-se outra vez no palco, me emocionaram. Ele errou, voltou, bateu no ombro do violonista Ronaldo Rayol, e retomou a letra. Pareciam dois meninos de volta, rindo e emocionados olhando e elogiando um ao outro. Cauby surpreendeu Angela, e cantou a ela “Abandono”, depois juntos, “Brigas”, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia, “Carinhoso”, de Pixinguinha, “Se queres saber”, e uma das mais completas canções do nosso folhetim musical, de Herivelto Martins, “Ave Maria no Morro”. Angela ainda cantou “Gente Humilde”, de Chico Buarque, o sucesso “Babalu”, com um tom mais brando, além de “As Pastorinhas”, “Bandeira Branca”, “Cidade Maravilhosa” e tantas outras coisas que fecharam um espetáculo triunfal. Muito bem produzido e dirigido. Piano, sax, violão, guitarra, flauta e baixo. Uma voz imortal, e que se recusa a deixar uma das maiores intérpretes que ainda escreve sua história num caderninho de partitura, amontoando sobre todos aqueles outros que o mundo inteiro já ouviu.

sábado, 26 de maio de 2012

Gal Costa coloca SP de pé e novamente emociona público



Gal agora está em casa, São Paulo é o seu mais novo endereço e que, segundo ela, é o lugar que mais lhe conforta e a retrata atualmente. Foi por aqui que ouvimos a estreia paulista do álbum “Recanto”, do qual já falei, muito bem por sinal, em minha estreia aqui na RedeTV!, portanto vou direto ao show, que aconteceu na última quinta-feira (24), no HSBC Brasil, e também na sexta. Mesmo rouca, por conta de uma faringite, Gal celebrou sua música no palco.

Numa plateia recheada de estrelas, lá estava Caetano Veloso, o diretor de “Recanto”, que sintetizou muito bem a história de Gal Costa nas letras das canções, de um álbum completamente eletrônico. Gal surge ao palco iluminada apenas por um facho de luz, e sob aplausos abre sua voz cantando “Da Maior Importância”, antiga composição de Caetano. Logo era possível sentir a desobediência entre o tom e as cordas vocais da cantora. Recentemente dois shows foram cancelados decorrente à uma faringite, porém ela resolveu encarar São Paulo e prometeu fazer um lindo show, e assim foi.

Gal brincou, conversou com o público, era uma veterana menina no palco, ao lado dos espetaculares solos do guitarrista Pedro Baby. Eu nunca pensei que ia assistir e ouvir a maior cantora do Brasil rouca e achar tudo maravilhoso, de fato era um recanto, onde cada letra trazia de volta sua história, seu tom, seu olhar e revelava uma grandiosa atriz num palco da música. Em “Folhetim”, de Chico Buarque, Gal deu voz ao público, e deixou que pudéssemos reforçar o tom que parecia vir com suor se recuperando no show.
 Há quem diga do porque não ter desmarcado o show, e eu penso que Gal já pode ousar o que bem entender sob um palco, e mesmo assim ela não se cansa de bem produzir, de inovar. Quando parecia que todo o show seguiria arranhando as cordas vocais, “Minha voz, minha vida”, de Caetano, parecia voltar dos anos 80 para calhar naquele instante. Mas foi na novíssima composição dele, “Autotune Autoerótico”, que a voz parecia entrar no eixo daquela Gal que veio da Bahia, para ser chamada por João Gilberto de “a melhor cantora do Brasil”. A canção traduz exatamente a imensidão de Gal para a música e a história brasileira, “Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar”, é preciso ser a tradução correta de uma intérprete para à frente de uma banda e de uma legião de fãs mostrar como é que se canta. A canção ainda conta um trecho de sua história, quando Gal, para ouvir sua própria voz e poder ajustá-la, colocava ao ouvido uma panela e cantava à sua metade, funcionando como um retorno, “americana global, minha voz na panela lá”. Foi assim que o público a aplaudiu de pé, mesmo sem ter terminado a canção, e a ovacionou com emoção.

Em “Miami Maculelê”, o funk aventureiro de Caetano, Gal também soltou o corpo, e tirou o público das cadeiras. “Baby”, “O amor”, “Vapor Barato”, e então “Um dia de Domingo”, relembrou os graves de Tim Maia. Gal o imitou na segunda parte, e não deixou a voz perder o tom em nenhum instante. O show ia chegando ao fim, quando Gal Costa voltou ao palco sob a baixa e intimista iluminação, cantando “Mansidão”, “Força Estranha” e “Meu Bem, Meu Mal”. A voz já estava quente, São Paulo entendeu a situação, e saímos de lá colocando Gal num posto ainda acima do que ela já está, se é que é possível. Fiquei surpreso, ou talvez já esperava. Não tenho medo de ouvir Gal, sei que será sempre suntuoso. Gal também se ouve com os olhos, sente-se, e aí vem os ouvidos, que nunca se decepcionam.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Mariana Muniz mostra outro lado da fala e movimento em “2 Mundos”


O espetáculo reestreou no último sábado (12), em São Paulo, na Sala Paschoal Carlos Magno, do Teatro Sérgio Cardoso, trazendo ao público a oportunidade de sentir a dança e a expressão, mediados pela intérprete Mariana Muniz. Em “2 Mundos” é possível encontrar o silêncio fundido ao som da música e poesia, e o dialeto da Língua Brasileira de Sinais.

Mariana Muniz recheia o palco com uma intensa movimentação corporal, vibrando o som em seu próprio eixo, dependendo apenas da própria flexibilidade. O teatro físico materializa-se no espetáculo em movimentos abstratos e de uma qualidade sensorial belíssima. Mariana soletra o alfabeto em LIBRAS e vai permitindo que o som penetre em seu corpo, a trilha é apropriada para envolver o público, fazendo com que possamos sentir a vibração dos sintetizadores e batucadas. A canção “Gostoso Demais”, de Nando Cordel e Dominguinhos, é interpretada por Mariana, tanto em LIBRAS, quanto pausadamente em voz, poetizando ainda mais a música. Toda a didática exposta na Linguagem de Sinais, torna o lirismo do espetáculo ainda mais  ritmicamente belo.

O espectro de “2 Mundos” surge do corpo de Mariana Muniz, figuras são desenhadas através de seus movimentos, e o silêncio é tracejado por palavras trazidas por gestos. A fala ainda é insuficiente para que o ser humano possa se expressar, e para os surdos e mudos a maneira mais rápida de comunicação é o gestual. São as mãos que os permitem falar, e que os tornam ainda mais expressivamente sensíveis. A atriz emite sons, exprime a tentativa de calar o silêncio com sua voz, e deixa claro que o movimento pode tornar o silêncio ainda mais apropriado. Entrar numa sala de teatro, após atravessar a cidade de São Paulo cheia de seus barulhos e ruídos, e ouvir o silêncio agregar-se ao som que nos vibra mentalmente e muscularmente, é, no mínimo, necessário e especial. Mariana lembra-me muito a intérprete Maria Bethânia, sua maneira de articular, de gesticular, de poetizar, além da forma costumeira de olhar do palco, e enquanto ajeita-se em cena, e fora dela. E isso é muito grande, não quero duplicar sua identidade, e sim enaltecê-la. 
A deficiência na audição e na fala não estão necessariamente ligadas, muitos dos mudos não exercitaram a voz, e por esse motivo têm a perda da emissão de sons. Esse é um campo que deve ser explorado por um fonoaudiólogo, para identificar as possibilidades. Na Idade Antiga os surdos e mudos eram, em muitos casos, tratados como dementes, e às vezes até venerados como favoritos dos deuses, o que era mais ocorrente na Pérsia e no Egito. Na época renascentista, apóstolos preocuparam-se em integrá-los à sociedade.  Em meados no século XVI, o matemático e médico italiano Jerônimo Cardan foi pioneiro em criar possibilidades práticas de educar os cegos e surdos-mudos. Cardan também foi requisitado como médico pelos reis Cristiano III, da Dinamarca, e Eduardo VI, da Inglaterra, e como matemático desenvolveu a fórmula para resolução das equações de terceiro grau. No século XVIII, o abade francês, Charles Michel L’Epée fundou o primeiro colégio para surdos-mudos, e ensinava os alunos por meio de mímicas, utilizadas durante anos, que descreviam letra por letra do alfabeto. No ano de 1856 o sistema de sinais, já mais aperfeiçoado, chegou ao Brasil junto ao conde francês Huet, que era surdo. Esse sistema foi universalizado e tornou possível que pessoas de nacionalidades diferentes se comunicassem, por indicarem letras, além disso, os sinais também representavam os desejos das pessoas. O médico americano Orin Cornett, em 1966, associou a linguagem de sinais à leitura labial, melhorando o entendimento. Hoje, cada país tem sua própria linguagem de sinais, porém todas derivam do método francês e alteram apenas de acordo com variações ortográficas regionais. Aqui no Brasil é conhecida como LIBRAS. O pianista Ludwig van Beethoven, foi um dos artistas mais sofridos da história, além de viver problemas conjugais e familiares, de perder muito cedo os irmãos, perdeu a audição e mesmo assim compôs famosas e belíssimas sinfonias. O pintor francês Goya, portador de uma doença então desconhecida, ficou parcialmente paralítico e cego, e totalmente surdo, enlouquecendo por conta disso, ainda pintou espetaculares quadros, muito valiosos. A sensibilidade é o melhor ângulo e a incrível forma de olhar, seja de um surdo, mudo, ou cego.

Mariana Muniz demonstra o emocionante ato de comunicar-se em LIBRAS, falo em ser emocionante, pela exclusão que ainda há deste assunto por aqui. É muito raro encontrar espetáculos realizados com tanta sensibilidade e preocupação em abranger a um amplo público, que não fica restrito apenas aos surdos-mudos, pois há sons e falas também. É raro ver o teatro especular as diferentes formas de linguagem, e na dança isso fica espetacular e harmônico. A descrição de peças em palavras ainda é muito complicada, pois ler muitas dessas palavras, para os surdos é algo muito difícil, a muitos não é possível ouvir a sonoridade das sílabas, portanto rígidas de interpretar. Na cidade de Tel Aviv, em Israel, há um grupo formado por atores portadores de deficiência auditiva e visual, o Nalaga’at, que apresenta-se em diversos países. Este mesmo grupo, em 2007 inaugurou um café com garçons surdos e um restaurante com servidores cegos. Isso é um exemplo para muitos países, principalmente ao Brasil, que ainda depende de ONGs para iniciativas sociais, que ainda sim são insuficientes.
O espetáculo “2 Mundos” é um resumo do sentimento de um surdo e mudo, é o grito registrado em gestos, é um ato sensorial de transformar um palco em expressão. A iluminação, de Ricardo Bueno, restringe-se em três cores, e marca muito bem o palco, com efeitos pontuais. A direção de Cláudio Gimenez é uma grande surpresa de cenas, pois é difícil prever qual pernada, qual braçada, qual emissão de som virá suceder a outra. A supervisão geral é de Eduardo Tolentino de Araújo, que encontra no palco um exemplo de aproveitamento e visão de roteiro. O som, que é uma das perfeitas assinaturas do espetáculo é obra de Ricardo Severo. O figurino versátil é de Tânia Marcondes. Carlos Avelino de Arruda Sampaio fez a assessoria técnica em LIBRAS, enquanto a Cria da Casa cuidou da produção.

Até o próximo final de semana, 19 e 20/05, é possível assistir “2 Mundos”, na Sala Paschoal Carlos Magno, do Teatro Sérgio Cardoso, às 19h. O preço é super popular, com a inteira por 15 reais.  É bom assistir, eu recomendo que lotem a intimista sala, o público está perdendo a oportunidade de conhecer um mundo além do seu. Eu fui emudecido enquanto assistia, e saí de lá com lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Nana Caymmi esteve em SP e diz não que não deixará os palcos


Nana Caymmi apresentou-se no último sábado no HSBC Brasil em São Paulo e disse que não consegue deixar a música. Faz três anos que a intérprete diz que vai parar de cantar, pela exaustão das viagens e montagens dos shows, mas sempre que sobe ao palco e é tomada pela energia da música, Nana volta atrás. Seu timbre espetacular, herdado do pai é uma raridade entre as mulheres da MPB. Seu repertório no show em São Paulo trouxe de volta boleros e sucessos imortalizados em sua voz, aquecidos pelos inseparáveis goles de uísque.

O show apresentado relembra os impecáveis álbuns de Nana, que já sapecou logo na entrada à emoção do público canções como “Por Causa de Você”, de Tom Jobim e Dolores Duran, e “Só em Teus Braços”, também de Jobim. Brilhando em tom preto, com uma orquídea rosada presa aos cabelos, o batom vermelho tracejando o rosto branco, Nana ficou ao lado do piano, que acompanhava um dos timbres mais belos da música brasileira. Foi assim que matei as saudades dela, à primeira vista no palco. Irreverente e com a língua afiada ela batia papo com o público no intervalo das canções, paparicada pela ovação dos ouvintes, Nana fez sua voz valsear lindamente pelo palco, com um certeiro arranjo, batido em boleros e dedilhados por uma bela bossa. Ela nunca preocupou-se com cenário, também com sua exuberância e imponência no palco, a própria sempre declarou-se uma obra de arte que substituí qualquer trabalho cenográfico, no dia, a iluminação tomou conta do espetáculo, que por vezes era regulada por sinais da própria cantora.

Nana parece que veio ao mundo sob encomenda, filha de Stella Maria e Dorival Caymmi, nasceu aos braços do Rio de Janeiro, na década de 40. Foi registrada como Dinahir Tostes Caymmi, e batizada pelo mundo como Nana Caymmi. Sua herança genética apontou no timbre contralto de Nana o evidente sucesso. Ainda criança adormecia com o pai cantando “Acalanto”, que fora gravado por ela posteriormente. Nos anos 60, na explosão de grandes nomes da música, Nana participa do LP de seu pai, cantando a canção que ouviu durante a infância toda, para ninar. Na TV Tupi  estreou apresentando-se no programa “Sucessos Musicais”, e em seguida, ao lado de Dori, seu irmão, no programa “A Canção de Nana”, apresentado por ela. Mas a história de Nana Caymmi no Brasil estava com os dias contados, quando casou-se com o pai de suas duas filhas, Stella e Denise, o médico Gilberto José, com quem morou durante muitos anos em Caracas. Ela vinha ao Brasil uma vez por ano, quando podia visitar os pais. Dorival Caymmi sempre foi muito machista, e cravou muitas brigas com a filha, que desde muito jovem mostrava-se sem papas na língua.
Nana gravou seus discos e foi despontando na música, separou-se do marido e voltou ao Brasil. Enquanto morava fora, recebia os discos dos amigos, perdia o espetacular da Bossa Nova e movimentos que engrossavam a beleza da nossa musicalidade, e isso foi determinante para seu retorno, desembarcando aos braços do Cristo Redentor, dessa vez grávida de um menino. Este ganharia o nome de um santo, já que vinha em junho, João, com o primeiro nome do pai, João Gilberto Caymmi, que seria então seu eterno companheiro, após mais dois casamentos. Um deles com o cantor Gilberto Gil. O filho mais novo infelizmente envolveu-se com drogas e bebidas, sofreu um acidente de carro e entrou em coma. João Gilberto passou a ter comportamento mental regressivo e a necessitar da reeducação da mãe e de sua incansável companhia. Depois deste episódio, de inúmeras cirurgias e acompanhamentos médicos, João voltou a usar drogas e foi preso por algumas vezes. Nana, por diversas vezes passou horas e horas sentada no banco da delegacia, tendo em mãos laudos médicos e um lanche para se sustentar, até a liberação do filho.

Nana Caymmi, não tinha apenas o escudo forte de seu pai, mas trazia a genialidade musical de gravar sucessos, como do jovem Djavan, e dos grandes revolucionários da musica e dos ritmos brasileiros. Venceu importantes prêmios e apresentou-se ao lado dos amigos, Gil, Toquinho, Caetano e Maria Bethânia, em programas da extinta Excelsior. No jornal Correio da Manhã, de 23 de fevereiro, Nana foi citada no poema “A Festa (Recapitulação)”, por Carlos Drummond de Andrade, e anos depois, no “Jornal do Brasil”, Tárik de Souza a intitula como a “Nina Simone brasileira”, enquanto Caetano Veloso considerava “Medo de Amar”, de Vinícius de Moraes, também cantada no show de São Paulo, como uma das interpretações mais expressivas da música brasileira, na voz de Nana. E realmente é desta forma que sua voz nos atinge enquanto essa canção passa por seu timbre.
Em 1980 Nana recebe grandes amigos num encontro delicioso no carioca Teatro Villa-Lobos, às segundas-feiras, ao seu lado cantaram Isaurinha Garcia, Rosinha de Valença, Cáudio Nucci, com quem foi casada, Zezé Mota, Sueli Costa, Fátima Guedes, Jards Macalé e outros, e continuou apresentando-se em palcos menores, aproximando-se sempre do público. Se eu fosse recontar tudo que Nana gravou e participou, precisaríamos de várias colunas. Foram palcos e mais palcos em diversos países, festivais e inúmeros temas de novelas. Uma das coisas mais lindas que já vi na música foi quando Dori, Danilo e Nana Caymmi, o trio musical, filho de Dorival e Stella, dedicaram ao pai um show em homenagem aos seus 90 anos. Músicas da mais bela composição, como “Acontece que eu sou baiano”, “A vizinha do lado”, “Severo do Pão”, “Vatapá”, “O Samba da minha Terra”, “Dois de Fevereiro”, “Lá vem a baiana”, “Saudade da Bahia”, “Requebre que eu dou um doce”, “Vestido de Bolero”, e ainda outras emocionaram Dorival, que ouvia da plateia fazendo coreografias, enquanto os olhos brilhavam. E é assim que ouvi e vi Nana neste último sábado, em São Paulo, com os meus olhos brilhando e o corpo penetrado de canção.

Um gole de uísque e a música vinha ainda mais bela, “Sem Você”, de Vinícius de Moraes e “Só Louco”, de Dorival são picos de emoção deste dois compositores, cintilados na voz de Nana. “João Valentão”, letra também de seu pai, saiu como um furacão de emoções, essa música é de uma robustez e ao mesmo instante de uma tremenda sensibilidade, que nos faz ouvir calado, mesmo sabendo a letra. “Marina” é uma das composições de Caymmi que mais me extasiam ao ouvir, pois é uma letra visual, e sem dúvidas, uma das mais belas artes da música brasileira, e Nana a cantou no HSBC Brasil, assim como agraciou o bolero com “Solamente uma vez”, de Agustin Lara”, e dentre outros sucessos, “Não se Esqueça de Mim”, de Roberto e Erasmo, que calça belamente à sua voz, muito melhor do que na deles, e “Resposta ao Tempo” de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, amavelmente apreciada pelo público.
Enquanto canta, seus olhos se fecham, os punhos serram-se, o corpo dança em seu próprio eixo. A orquídea parece ganhar vida sob a força dessa jovem de 71 anos, que se deixar o palco, esmaece uma sensível faixa da música popular brasileira. Nana é como um rádio para os amigos, Miúcha e Bethânia vivem pedindo canções a ela, quando estão juntas. Nana é como um ser mitológico da música, em que é possível tornar tácito, quando entende-se a beleza de cada composição, e isso é fácil quando ouve-se interpretada por ela. Nana é um barco só no oceano, suficiente para fazer o mar cantar às suas batidas no casco.  Ela reclama, e eu assino embaixo cada palavra sua, a música anda burra, a atualidade têm apedrejado o sentido da interpretação e da composição. Enquanto ela prende à parede um disco de ouro, “quilos e quilos de merda” têm diamante e outros acima. Para Nana, a obrigação de cantar é um pé no saco, o vai e vem entre ponte aérea e viagens longas, no aperto das poltronas de companhias aéreas e o faz e desfaz de malas é um trabalho que a idade lhe puxa pra baixo.

Nana pretende realizar um show em homenagem aos 100 anos do pai, que faleceu no mesmo ano que sua mãe, e lhe trouxe imensa tristeza, em 2008. Composições guardadas de Dorival, devem ser retiradas da gaveta por ela, assim como o lado B de Tom Jobim, que o público poderá apreciar com a mesma sutileza e carisma que ouvem em seus shows. O HSBC Brasil receberá ainda neste mês a adocicada voz de Gal Costa, e a brasilidade roqueira de Zélia Duncan e Dinho Ouro Preto, o samba de Mart’nália e o pop de Lulu Santos. Foi bom matar as saudades de Nana, e nós queremos ainda mais!

Fotos: Taiz During

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Virada Cultural em São Paulo dissolve sua programação no ridículo popular



O grande espetáculo a céu aberto, que enlaça culturalmente a cidade de São Paulo em 24 horas de cultura, tem seus prós e contras registrados no decorrer de sua programação. Entre ruas escuras, pivetes assaltantes, volúveis senhoras sem escrúpulo, grupos de boa índole, solitários à procura de alguém, bêbados ancorados entre as esquinas, jovens desperdiçando-se pelas sarjetas, famílias e gente do bem e do mal, a programação rolou nos dois dias de música e cultura com consagrados nomes e bandinhas alternativas que arrebataram milhares de pessoas pelo centro da cidade, dando tom à saudosos pontos turísticos, debandados nos dias comuns da maior cidade do país. Gilberto Gil, Ângela e Cauby, Titãs, Os  Mutantes, Gretchen, Jair Rodrigues, Leci Brandão e um palco em homenagem a Elis, foram algumas das atrações musicais dessa edição.

O Viaduto do Chá revelava uma das mais lindas fotografias paulistanas, ao cair da noite a iluminação mostrou a paulicéia cinematográfica que despontava Arnaldo Batista abrindo os trabalhos no renovado Teatro Municipal, que em seguida trouxe as estrelas maiores da música brasileira, Cauby Peixoto e Ângela Maria, com um arranjo musical monumental enriquecendo o Municipal com os acordes de uma orquestra e do público que gritava emoção com aplausos e o calor da recordação de grandes sucessos. Cauby e Ângela estavam deslumbrantes, e receberam a surpresa de Elis Regina, num vídeo gravado especialmente para Ângela Maria, seu ícone de influência musical. Edy Star fechou a noite no Municipal com seu rock cheio de brilhos e à memória de Raul Seixas, com a surpresa da presença de Emílio Santiago. No dia seguinte o palco abriu-se para Badi Assad e o Balé do Teatro Castro Alves, de Salvador. Além de Zezé Motta e o samba de Leci Brandão, que vestiu o teatro de entusiasmo e ritmo. Foi especial ver Leci com muita energia no palco e levantando um grupinho de senhoras que sambavam numa das frisas, e que empolgou a todo o público a cantar de pé esquentando os tacos do carpete com muito samba.

Lá fora o coro comia em todos os sentidos. A beleza ia desabrochando e distribuindo notas musicais até pelos ares. No mesmo Viaduto iluminado um piano içado à metros de altura era tocado por um maestro, lá embaixo um palco recebia orquestras e dança. O Pátio do Colégio foi condecorado com peças teatrais, Denise Fraga inaugurou o palco com “Sem Pensar”, e por ali também passou “A Alma Imoral” e “Luis Antonio – Gabriela”, e “Os Sete Gatinhos”, obra de Nelson Rodrigues, que por sinal foi horrivelmente interpretada. A Praça da Sé foi obrigada a receber um time de stand up comedy, logo em frente a Catedral. Imagino que as obras sacras afixadas nos mármores esculturais da igreja sentiram vontade de se desprenderem e correr daquele show de horrores, não só dos contadores de “comédia”, mas do público que ali ria. Uma gorda fatia deste público que ria dividia a atenção para o palco e a garrafa de química líquida que tomava de mãos em mãos. Mesmo com o acesso de imprensa, preferi, por vezes, dividir o espaço com aquela mansidão de gente que espremia-se em lajotas que prendiam nossos pés em litros e litros de urina e vômito. A fumaça cortinava os palcos, cigarros e maconhas atraíam a molecada que ainda nem brincou de carrinhos e bonecas em casa. Eu queria saber onde estão as mães que permitem que suas gracinhas passem madrugada afora, certamente divertem-se em casa fabricando mais beldades para disputarem espaço entre civilizados e cambadas.
O stand up foi uma boa sacada para a Virada, tirou o riso de muita gente, inclusive de um senhor cego que procurava lugar para estacionar sua bengala, de uma jovem que insistia em desmaiar por onde escorava, da juventude interessada, e despreparada. Tive pouca paciência de ser espectador de textos que já ouvi milhares de vezes nos teatros. Eu gostaria de entender que espécie de stand up está se fazendo no Brasil, pois não é nenhum pouco do sentido real da comédia em pé. Stand up não se faz mais na inexperiência dessa galera jovem que pega em mãos um microfone e relembra um texto ensaiado em casa. Stand up não é texto, primeiro é preciso aprender a fazer rir, para depois encarar um palco. Bruno Motta e Robson Nunes precisam renovar suas performances, não é porque estamos num espetáculo aberto e gratuito que seremos levados aos textos já batidos em teatro e TV, e sem um pingo de graça, pelo menos pra mim.  Das duas, uma, ou sou eu o chato, ou são eles. O fato é que sou totalmente desinteressado por essa espécie de stand up que se tem feito por aqui. Eu acho um saco ser espectador de quem não sabe fazer humor.

Mais de 60 pessoas deram entrada na Santa Casa de Misericórdia, que fica na região central, com problemas relacionados à extravagância no evento. Abancados aos monumentos históricos jovens recheavam seus fígados de cachaças baratas, bebidas avermelhadas, das quais eles chamam de vinho. Até chegaram a me oferecer. Nas sarjetas, jovens que nem desfrutaram de sua adolescência, entopem-se de qualquer droga que encontram pela frente. Ali ao lado do palco, um que tocava um rock, e que levava empolgante o público, um grupo de pivetes e malandros, com suas toucas bem apertadas, as calças de moletom apertando os tornozelos, saindo à boca canções que carimbam a morte da cultura popular, distribuíam socos em quem passava, roubando bonés, óculos e celulares. Saíam contentes, vangloriando o roubo, abaixo da lua próxima, de um evento voltado à cultura, onde foi investido o dinheiro daquele próprio público que estava presente, e não presente. Gangue de ratos, oportunos e burros. Foram pegos na madrugada e detidos, após fazer miséria por onde passavam. Ladrõezinhos pés de chinelo. Fui submetido a cheirar a droga que eu não fumei, a pisar numa urina que não era minha, a dançar aquele ritmo ridículo que tocava num boteco, o “eu quero tchu, eu quero tcha”, somente para passar com maior discrição (que ironia) entre aquele público que bebia sua mistura coloral, que eles chamavam de uísque.
Meninas de shorts curtos, arrepiando as pernas ao friozinho que deitava-se pela metrópole, que recusava-se adormecer para dançar ao burlesco som de Gretchen, que levou o público ao delírio no palco Cabaré, que também recebeu Rita Cadilac, enquanto do outro lado, em frente ao suntuoso relógio da Estação Júlio Prestes, cheio de reggae e letra, Gilberto Gil encerrava a Virada Cultural, com maior índice de falta de cultura de todos os tempos. Gil não tem nada a ver com isso, é claro! Cantou sucessos de sua carreira e levantou o público que salteava ao swing baiano do cantor, além de alguns cigarrinhos que iam queimando em nossas narinas. Foram incontáveis palcos e atrações disponíveis para o público, alocadas pelo centro e distribuídas também em Sescs e centros de cultura de toda a cidade. Teve até Byafra e o imortal Serguei, Tetê Spíndola, os nigerianos Seun Kuti & Egypt 80, música eletrônica, luta livre, cinema e carros antigos. O transporte público também recebeu cultura, e funcionou como nunca antes. É uma bela maquiagem do funcionalismo que não existe. Chega a ser hipocrisia.

Entre as alegorias de escolas de sambas, que esculpiam os jardins do Anhangabaú, passavam roqueiros e fanáticos pela música eletrônica, exaltada nas mãos de bons DJs. As vassouras vinham ao final do dia recolhendo a ignorância daquele povo que não sabe receber a oferta cultural. No Minhocão, a Galinhada do chef Alex Atala voou como se estivesse viva, não houve organização e o prato virou um sopão daqueles aguados que o prefeito manda distribuir nos viadutos aos mendigos, que, por sinal, perderam seu chão frio por onde dormem diariamente, onde bebem sua caninha e fumam as bitucas arremessadas ao chão. Eram 24 horas voltadas à diversidade cultural, ao som dos bolivianos de cocares, das estátuas vivas, do sol que refletia em cores os vitrais do belo Teatro Municipal, dos hippies que arrematavam seus brincos e pulseiras, do pianista que voltava às alturas, a bailarina de vermelho, e o mendigo ia tentando um cantinho para repousar, entre pés cansados da multidão, urinas, pó e a saudade de Tinoco, que nos deixou às vésperas de sua apresentação.

A cultura tentou penetrar pela proposta política de devolver ao público os impostos exagerados a nós cobrados, a criançada tentava ouvir o que vinha de música pela frente, o mundo parecia ter pousado em peso no centro de São Paulo. Garrafas quebradas, sotaques diversos, beijos e amassos, bancas de comidas regionais, a morte de uma menina por overdose, o policial federal que atirou a esmo, a prefeitura tão corrupta teatralmente e ironicamente alocada em frente ao Municipal, a programação horrivelmente desenhada espedaçando-se pelas ruas. As atrações iam findando-se, cadeiras esvaziando o calor do público, o samba aquecendo os tambores no Largo de São Francisco, e deixando o ritmo pra próxima, que eu e certamente metade da população paulista estima melhoras. Essa foi uma edição doente da Virada, que está de cama, naquela Santa Casa, tão santa, que atendeu aos meninos e meninas de fígados jovens e destruídos, marginalizada em volta das monumentais igrejas, violentada nas esquinas assaltadas de São Paulo. Não somos uma cidade violenta. Somos uma metrópole violentada. Vadiamente habitada, inconscientemente monopolizada, canalhamente politizada, avacalhada na mente jovem, mas ainda sim monumentalmente bela. 

Fotos: Ricardo Matsukawa/Terra; Mitsuo; Fernando Borges/Terra; Angelina Yamada