Enlaçada por notas centimetradas, encaixadas a dedo nas arestas finíssimas de sua voz. Gal Costa é descortinada enquanto solfeja os espaços oportunos em que as notas de Guilherme Monteiro (guitarra/violão) exalam. O Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, recebeu uma nova ruptura artística, um novo álibi para se delirar com Gal. "Espelho d’Água" vem em época de seca encharcar-nos do passado e do novo. A baiana ocasiona esse choque, quase anafilático!
Gal havia cometido um rompante em sua carreira quando estreou o "Recanto", show dirigido por Caetano Veloso e que imprimia forte personalidade de ambos na música e na levada cênica de todo o espetáculo. Ela vinha incorporada em fibras e irredutível em uma morada construída a quatro mãos. Sem deixar de carregar toda a brutalidade do "Recanto", Gal inseriu a paz dissolvida em sua voz e, ao lado de Marcus Preto, desenhou um novo roteiro para manter os pés no palco. "Espelho d’Água" rebusca canções e parece constituir-se de um tudo novo.
O arranjador desse deserto, em que o oásis é o som, Guilherme Monteiro reveste Gal de uma túnica esvoaçante, cheia de oportunidades de garantir canções quase inéditas. Guilherme cria um elo indissolúvel entre as cordas e a intérprete, como se as duas coisas funcionassem devido à mesma veia. Ele permite que ela acomode a voz num berço seguro.
Nota-se que sobra um facho de ar na voz de Gal devido ao ganho de belos graves que misturam-se com a leveza e o ímpeto dos agudos. Ela e a guitarra aturam-se feitos parceiros congênitos, nos altos e nos baixos.
Um repertório histórico e que tortura a intimidade de todos os ouvidos, que faz descer estribilho abaixo a coisa mais bela exprimida por poetas compositores. A abertura fica por conta de "Caras e Bocas", de Caetano Veloso e Maria Bethânia, canção que berra o deleite do conluio de dois mestres. Fragmentos do "Recanto" ainda permeiam o espetáculo e as súplicas antigas do público calam-se, pois sem que precise ser entoadas Gal descasca "Vaca Profana", de Caetano e "Meu Nome É Gal", de Roberto e Erasmo.
Outros títulos atingem o cume ensolarado do show, exímia em capturar o mais nobre dos arranjos, ela enfileira "Sua Estupidez" naqueles mesmos versos de antes. A canção em que Roberto e Erasmo parecem ter se travestido das mais enluaradas mulheres e já ouvido, enquanto compunham, o cristal de Gal lacerar verso a verso. "Negro Amor" e "Tigresa" encontram no timbre entrelaçado de graves e agudos um aconchego irresvalável. Quando toda a beleza já parecia ter estonteado "Tuareg", de Jorge Ben, reelabora e rebusca a Gal do "Recanto", reinventa e torna esfinge a ave de rapina que entoava um dos mais lindos roteiros que já assisti.
"Um Favor" deixou-me ainda mais devoto de que as mulheres da nossa música afirmam-se divas ao cantar Lupicínio Rodrigues.
Gal Costa cantou e canta como só as melhores do mundo podem! A alquimia entre o sutil e o luxuoso esta no tubo de ensaio que ela encaixou nas cordas vocais quando João Gilberto disse: "eis a maior cantora do Brasil". E é!