Ao piano a poesia de notas vai captando a imagem monocromática que paira a tinta antiquíssima do vídeo, Maria Bethânia sentada ao piano prolonga o suspiro da voz nas pausas dos dedos sobre as teclas. Cleonice Berardinelli ouve com os olhos astutos acima do piano! O levantar da intérprete dá-se à métrica da sonoridade poética de Fernando Pessoa, os homens que nele habitaram, chamados de heterônimos, e aos quais as nobres senhoras dedicam "O vento lá fora". O filme de Marcio Debellian enquadra em linha reta os bastidores de uma aula, que mais parece uma leitura e de uma leitura que mais parece uma aula, confrontando a voz e a poesia de um tempo passado, encontrado em retalhos de papel e despejado em vozes singulares.
O livro-DVD reúne páginas de poesia, imagens em preto e branco e um CD apenas com o áudio da leitura. Uma trinca para aprisionar qualquer apaixonado por letras! Na capa o dedo enriste da professora Cleonice apontado à Maria Bethânia, como o habitual dos mestres ao ensinar. Colorido em escalas acinzentadas de preto e branco, o vídeo exibe uma fotografia impressionante e impecável, trazendo à frente as atrizes que destrincham a literatura visceral de Pessoa.
Há um mundo dentro de cada poesia... há um espetáculo teatral que triunfa generosamente nas gravidades vocais dessas senhoras. Cleonice não poupa o movimento, nem os rompantes. Faz o delírio de cada verso e atenua as métricas repreendendo Bethânia quando modernizava qualquer letra. Bethânia volta e relê! A professora empina o dedo.
O produto que sua Pessoa em um aroma indecifrável foi lançado pela Biscoito Fino, sob o selo da Quitanda e coprodução do Sesc São Paulo. O arsenal alfabético do poeta português vai ganhando linha em uma tábua reta em que as intérpretes debruçam. Em um estúdio as paredes engorduram letra por letra e o projeto torna-se biblicamente um Alcorão. Mata-se uma célula e mil se multiplicam a cada êxtase de pronúncia das escritas do célebre poeta, o meu preferido!
É lindo ver Cleonice interpretando como uma gigante do cinema... seu natural interpretar é uma poesia! Debellian acaricia o filme com as doces, temperadas e rígidas mãos de um maestro. Deixa ao parque a lisura gráfica e o olhar de grafite das intérpretes esbaldarem-se de um mel chamado palavra.
No ano em que a baiana completa 50 anos de carreira, sua imersão à obra de Fernando Pessoa sugere um resgate da poesia nas canções. Algo que não vemos em composições contemporâneas. Maria Bethânia abre os palcos como uma mãe de santo que invoca seus pretos velhos num terreiro e indica uma sucessão de comemorações à altura. Como o "Carcará", que deu-lhe os primeiros verbos na canção e no cenário teatral brasileiro, seus passos galgaram para uma das maiores do País. Desde 1965, quando o Golpe Militar estourava às esquinas culturais, a baiana esvoaça entre os cabelos verbetes musicais invioláveis.
O jubileu da cantora terá início no Vivo Rio, na capital fluminense, com cinco dias de espetáculo, entre os dias 10 e 18 de Janeiro. O show também já está confirmado no HSBC Brasil, em São Paulo, com quatro apresentações entre os dias 14 e 22 de março. Seu último álbum, "Meus Quintais", vai estourar o chão de tanta pisada brejeira e típica de uma mulher "recôncava" nesses espetáculos comemorativos. Neste ano o Prêmio da Música Brasileira, em sua 26ª edição, homenageará Maria Bethânia.
Nas livrarias é possível encontrar à venda o filme "O vento lá fora"!
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