A
peça Cruel é um retrato bem esmiuçado entre as relações humanas, o autor, August
Strindberg, rebusca as incitações sobre o amor, o ódio, a volúpia, a amizade e
a mentira. O texto foi ricamente explorado pelo diretor Elias Andreato, que
entregou à digna atuação de uma trinca de ases, tão disputada como num
Sarangollo, ou no Truco, que seja. Reynaldo Gianecchini, Maria Manoella e Erik
Marmo espetam olhares, trocam farpas, destroem segredos, dissecam verdades e
derramam ironia, uma pitada cômica e ímpetos sob o palco, no Teatro Faap, em
São Paulo.
Considero a obra como prima, porque adentra ao modernismo cutucando a sociedade puritana, e talvez até os mais devassos e contrários. Strindberg faz o público digerir com contento o próprio espelho de mentiras quebradas por alianças mal calçadas aos dedos dos cônjuges. Os olhares fervorosos tratados no script traem a confiança um do outro e servem na bandeja corações em sangue. Cruel é o retrato de qualquer época, é a balança do amor e o ódio, que não sabe a que peso pagar. O texto é um traço psicológico das canalhices modernas a que o ser humano se submeteu, e tão atual que arrastou-se para a jornada contemporânea dos casamentos. Cruel é o fio da meada de histórias já tão contadas, mas pouco compenetradas como na mente vívida de Strindberg.
Quantas
histórias já passaram pelos palcos e pelos registros históricos de amores
contados em três vozes. As famílias mais famosas do mundo, enquanto colonizavam
terras mundo adentro cegavam-se com pontas de facas afiadas pelas próprias
mentiras e aversões. Traições, fadigas sentimentais e canibalismo ao coração
alheio eram cartas de alforria para qualquer escritor sair psicografando a
montoeira de livros que contam os causos reais e coloniais. Desde o homem rico,
ao escravo e camponês, à princesinha e o Romeu apaixonado. Isso é psicologia
aplicada a história, tentando recontar uma história que ocorreu, ou não, com
intuito de rechear essa história com um pouco mais de adrenalina. O fato é,
ninguém sabe o que ocorria dentro da senzala, nem do outro lado do Rio Tejo,
mas sabe-se que a coisa era bem regada à hipocrisia, persuasão, rasgação de
seda e da seda de longos vestidos que só escondera a imoralidade que cabe a
cada um. Strindberg chegou às mãos de Andreato com o sinônimo de reunir a
capacidade humana de amar e odiar, ao mesmo instante em que admiram e são
admirados, como fatias de carne, ou como o sangue da carne.
Cruel
não é uma história obscura e nem medonha, eu a consigo olhar como bela. É
contada com uma leveza muito bem traduzida pelo brilhante e uma das figuras
mais queridas do teatro, Elias Andreato. O verdadeiro nome do romance escrito
pelo sueco é “Creditors”, ou Os Credores, em português. Mas a tradução de
Andreato ocupou-se de destrinchar o sentido mais saltado nas veias dos três
personagens, o cruel, vingado por um, a crueldade recebida por ela, e o cume do
homem traído. Ficou então o título da peça: Cruel. Gustavo, interpretado por
Reynaldo Gianecchini é a caixa preta do espetáculo, que conduz as mentes de
Adolfo, interpretado por Erik Marmo, e Tekla, por Maria Manoella. Gustavo monta
um invicto alçapão que prende por orgulho e determinação a ex-esposa, Tekla que
vive a enganar o amor de seu atual marido, Adolfo, antes envenenado também por
Gustavo, que acaba por descobrir, através da personalidade cruel do então
amigo, que lhe entrega ao desespero.
A
preparação dos atores é implacável. Erik Marmo reveste-se da revolta e angústia
resultada pela mentira duplamente qualificada de um suposto amigo e uma suposta
parceira, segue trocando expressões e gestuais ternamente compatíveis ao
temperamento baqueado de seu personagem. Maria Manoella é um código
perfeitamente decifrável de um drama europeu, é a ironia personificada de sua personagem,
tem um olhar transitório entre revolta, sensualidade e arrependimento, e veste
ao corpo, além do impecável figurino, um sensual jogo gestual. Enfim, Reynaldo
Gianecchini dá seu trago violento de um personagem impiedoso, como um traído de
um romance policial, ou o venenoso de uma tragédia shakespeariana. O ator crava
um olhar constante e que ridiculariza qualquer verso explícito do corpo de sua
parceira de cena, Gianecchini é o correto tom do personagem cruel, esquiva-se
de galanteios e abusa com muita maestria da sensualidade de seu personagem e
facilitada por sua fama de galã, e não contente ainda controla o olhar, os
ímpetos e a revolta dos textos de seus companheiros de cena. É de seu orgulho
encorpado que nasce a voracidade dos outros, do texto e do tom da peça.
A
produção é uma cartada de mestre, no mesmo jogo daquela trinca de ases, da
dupla Selma Morente e Célia Forte, já consagradas pelo realismo teatral e pela
seriedade em que tratam do humor ao drama. A iluminação regida por Wagner Freire
torna o espetáculo ainda mais tácito e próximo ao clímax real das cenas. Fábio
Namatame é o artista responsável pelo figurino épico, bem cortado e lindamente
desenhado, gerindo tons sobre tons e aceitando a evolução dos atores do palco.
Além do figurino ele leva ao palco um incrível cenário, que não exige troca,
não cansa a cena, e ainda nos permite imaginar o outro lado da cena, é belo e
tem uma desordem muito bem artisticamente organizada.
O
espetáculo é como um quadro de Picasso, interpretado pela revolução moderna e
sexualista de Anita Malfatti, ou talvez, até mesmo aquelas gravuras volúveis de
Picasso que poucos tiveram a oportunidade de conhecer. Mas também é difícil ver
Strindberg por aí, evidente que só seria bem relido por um dos mestres do
teatro, Elias Andreato. Poucos entendem tão bem dos traços psicológicos
intrínsecos em textos dramáticos. Seu voraz e cruel Gustavo, redesenhado por
Reynaldo Gianecchini renasceu nesta segunda temporada que se encerra no dia 15
de maio no Teatro Faap, e segue com apresentações nos Céus, em São Paulo.
Gianecchini, enquanto estava em cartaz na primeira temporada recebeu o laudo de
câncer em seu quadro clínico e teve que se afastar dos palcos. O ocorrido
fez-me lembrar daquele que comandou a arte teatral por muitos anos, Paulo
Autran, que mesmo em tratamento do câncer subia ao palco para alimentar suas
forças e cumprir sua missão artística. Gianecchini hoje serve de respaldo à
arte, com os cabelos ainda ralos e esbranquiçados arrebata graúdos sons de
aplausos por sua qualidade técnica, sensível e humana de encarar a vida, seus
percalços e o determinismo artístico. Fica aqui meu cumprimento ao ator e
estimas de sua evidente melhora clínica e aplausos à espetacular lição de vida
que vem nos deixando a cada depoimento e expressão de força.
O espetáculo
está em cartaz de segundas e terças, que por sinal achei ótimo, às 21h, no
Teatro Faap, em São Paulo. Os ingressos custam R$ 60,0. Hoje (30) haverá sessão
extra às 19h. Fotos: João Caldas.