segunda-feira, 30 de abril de 2012

Cruel, a obra prima da psicologia teatral




A peça Cruel é um retrato bem esmiuçado entre as relações humanas, o autor, August Strindberg, rebusca as incitações sobre o amor, o ódio, a volúpia, a amizade e a mentira. O texto foi ricamente explorado pelo diretor Elias Andreato, que entregou à digna atuação de uma trinca de ases, tão disputada como num Sarangollo, ou no Truco, que seja. Reynaldo Gianecchini, Maria Manoella e Erik Marmo espetam olhares, trocam farpas, destroem segredos, dissecam verdades e derramam ironia, uma pitada cômica e ímpetos sob o palco, no Teatro Faap, em São Paulo.

Considero a obra como prima, porque adentra ao modernismo cutucando a sociedade puritana, e talvez até os mais devassos e contrários. Strindberg faz o público digerir com contento o próprio espelho de mentiras quebradas por alianças mal calçadas aos dedos dos cônjuges. Os olhares fervorosos tratados no script traem a confiança um do outro e servem na bandeja corações em sangue. Cruel é o retrato de qualquer época, é a balança do amor e o ódio, que não sabe a que peso pagar. O texto é um traço psicológico das canalhices modernas a que o ser humano se submeteu, e tão atual que arrastou-se para a jornada contemporânea dos casamentos. Cruel é o fio da meada de histórias já tão contadas, mas pouco compenetradas como na mente vívida de Strindberg.

Quantas histórias já passaram pelos palcos e pelos registros históricos de amores contados em três vozes. As famílias mais famosas do mundo, enquanto colonizavam terras mundo adentro cegavam-se com pontas de facas afiadas pelas próprias mentiras e aversões. Traições, fadigas sentimentais e canibalismo ao coração alheio eram cartas de alforria para qualquer escritor sair psicografando a montoeira de livros que contam os causos reais e coloniais. Desde o homem rico, ao escravo e camponês, à princesinha e o Romeu apaixonado. Isso é psicologia aplicada a história, tentando recontar uma história que ocorreu, ou não, com intuito de rechear essa história com um pouco mais de adrenalina. O fato é, ninguém sabe o que ocorria dentro da senzala, nem do outro lado do Rio Tejo, mas sabe-se que a coisa era bem regada à hipocrisia, persuasão, rasgação de seda e da seda de longos vestidos que só escondera a imoralidade que cabe a cada um. Strindberg chegou às mãos de Andreato com o sinônimo de reunir a capacidade humana de amar e odiar, ao mesmo instante em que admiram e são admirados, como fatias de carne, ou como o sangue da carne.
Cruel não é uma história obscura e nem medonha, eu a consigo olhar como bela. É contada com uma leveza muito bem traduzida pelo brilhante e uma das figuras mais queridas do teatro, Elias Andreato. O verdadeiro nome do romance escrito pelo sueco é “Creditors”, ou Os Credores, em português. Mas a tradução de Andreato ocupou-se de destrinchar o sentido mais saltado nas veias dos três personagens, o cruel, vingado por um, a crueldade recebida por ela, e o cume do homem traído. Ficou então o título da peça: Cruel. Gustavo, interpretado por Reynaldo Gianecchini é a caixa preta do espetáculo, que conduz as mentes de Adolfo, interpretado por Erik Marmo, e Tekla, por Maria Manoella. Gustavo monta um invicto alçapão que prende por orgulho e determinação a ex-esposa, Tekla que vive a enganar o amor de seu atual marido, Adolfo, antes envenenado também por Gustavo, que acaba por descobrir, através da personalidade cruel do então amigo, que lhe entrega ao desespero.

A preparação dos atores é implacável. Erik Marmo reveste-se da revolta e angústia resultada pela mentira duplamente qualificada de um suposto amigo e uma suposta parceira, segue trocando expressões e gestuais ternamente compatíveis ao temperamento baqueado de seu personagem. Maria Manoella é um código perfeitamente decifrável de um drama europeu, é a ironia personificada de sua personagem, tem um olhar transitório entre revolta, sensualidade e arrependimento, e veste ao corpo, além do impecável figurino, um sensual jogo gestual. Enfim, Reynaldo Gianecchini dá seu trago violento de um personagem impiedoso, como um traído de um romance policial, ou o venenoso de uma tragédia shakespeariana. O ator crava um olhar constante e que ridiculariza qualquer verso explícito do corpo de sua parceira de cena, Gianecchini é o correto tom do personagem cruel, esquiva-se de galanteios e abusa com muita maestria da sensualidade de seu personagem e facilitada por sua fama de galã, e não contente ainda controla o olhar, os ímpetos e a revolta dos textos de seus companheiros de cena. É de seu orgulho encorpado que nasce a voracidade dos outros, do texto e do tom da peça.
A produção é uma cartada de mestre, no mesmo jogo daquela trinca de ases, da dupla Selma Morente e Célia Forte, já consagradas pelo realismo teatral e pela seriedade em que tratam do humor ao drama. A iluminação regida por Wagner Freire torna o espetáculo ainda mais tácito e próximo ao clímax real das cenas. Fábio Namatame é o artista responsável pelo figurino épico, bem cortado e lindamente desenhado, gerindo tons sobre tons e aceitando a evolução dos atores do palco. Além do figurino ele leva ao palco um incrível cenário, que não exige troca, não cansa a cena, e ainda nos permite imaginar o outro lado da cena, é belo e tem uma desordem muito bem artisticamente organizada.

O espetáculo é como um quadro de Picasso, interpretado pela revolução moderna e sexualista de Anita Malfatti, ou talvez, até mesmo aquelas gravuras volúveis de Picasso que poucos tiveram a oportunidade de conhecer. Mas também é difícil ver Strindberg por aí, evidente que só seria bem relido por um dos mestres do teatro, Elias Andreato. Poucos entendem tão bem dos traços psicológicos intrínsecos em textos dramáticos. Seu voraz e cruel Gustavo, redesenhado por Reynaldo Gianecchini renasceu nesta segunda temporada que se encerra no dia 15 de maio no Teatro Faap, e segue com apresentações nos Céus, em São Paulo. Gianecchini, enquanto estava em cartaz na primeira temporada recebeu o laudo de câncer em seu quadro clínico e teve que se afastar dos palcos. O ocorrido fez-me lembrar daquele que comandou a arte teatral por muitos anos, Paulo Autran, que mesmo em tratamento do câncer subia ao palco para alimentar suas forças e cumprir sua missão artística. Gianecchini hoje serve de respaldo à arte, com os cabelos ainda ralos e esbranquiçados arrebata graúdos sons de aplausos por sua qualidade técnica, sensível e humana de encarar a vida, seus percalços e o determinismo artístico. Fica aqui meu cumprimento ao ator e estimas de sua evidente melhora clínica e aplausos à espetacular lição de vida que vem nos deixando a cada depoimento e expressão de força.  

O espetáculo está em cartaz de segundas e terças, que por sinal achei ótimo, às 21h, no Teatro Faap, em São Paulo. Os ingressos custam R$ 60,0. Hoje (30) haverá sessão extra às 19h. Fotos: João Caldas.

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