Não era só Bethânia que entrava ao palco naquele show, era
ela e uma entidade muito íntima de sua inteligência musical. A introdução do
espetáculo já antecipava-nos a grandiosidade daquilo tudo, enquanto deitava uma
poeira alaranjada causada pela luz e pela fumaça, esvoaçava um dourado de Oxum
vestindo uma voz inconfundível. Ia ecoando... ecoando... ecoando, até a imagem
cobrir o palco. Uma das maiores cantoras do Brasil batia os pés descalços no
palco do HSBC Brasil, em São Paulo.
Pude ver inúmeras Bethânias ao longo do tempo, algumas mais
tímidas, principalmente na intimidade, e algumas explosivas, num entusiasmo
expelido pelas canções de seus espetáculos e o norte sereno da calmaria de suas
poesias. Bethânia vai do efusivo ao plano... Nesta noite, eram mulheres de
todos os sentidos rasgando a pele da santamarense.
Ainda não havia visto aquela mulher dançar o tempo todo,
sambar com os pés desinibidos e corpo sem limites. Ainda não tinha visto
Bethânia extravasar os auges de sua carreira tão lindamente em ritmos
batucados. Mas, quando ouvi “Lua Branca” corria-me um arrepio calado, que
sussurrou em todos uma tranquilidade quase que impossível de recontar. Mas daí
vinham os batuques e a poeira subia feito uma roda de samba na terra... feito
um terreiro de portas abertas.
Maria Bethânia, tão impossível de dissociá-la de mãe Canô
levantou-nos em aplausos quando deu-nos o “Reconvexo”. Ao cantar a canção
escrita por seu irmão, Caetano Veloso, em lembrança, todo o público levantou
para aplaudir enquanto soava “quem não rezou a novena de dona Canô...”
Com o poeta sentado a sua frente, ela cantou “A Casa é Sua”,
e sem dúvidas laçou o brilho dos olhos de Arnaldo Antunes para suas notas.
É tão automático aguardar as toadas sem pressa de Jaime
Alem, a viola caipira e o fitar aos passos de Bethânia... que ainda causa-me
espanto ver Wagner Tiso em seu palco, comandando o piano. São duas imensas
entidades musicais fundindo suas notas. Às vezes, Bethânia parece correr, além
de sua naturalidade, junto a partitura do maestro. Mas, esse é o novo cenário
da baiana. Aliás, a Bahia vem em peso no ritmo de “Carta de Amor”.
Quando chega a canção que dá nome ao show, é Bethânia poeta.
Que permitiu-se não queimar uma composição sua pra mostrar-nos o monumento que
a rege por dentro. Bethânia recebe algo muito grandioso para tornar o show tão
monumental... ou é algo do tipo Iansã, ou é algo do tipo Fernando Pessoa. Sei
que é ela com um gigantismo impressionante!
Nesta terça-feira Maria Bethânia ainda apresenta-se no HSBC
Brasil, em São Paulo. Os ingressos estão esgotados. Depois, a cantora segue
para o Rio de Janeiro, Pernambuco e Sergipe.
Fotos: Riziane Otoni
Lindo texto! Lindas fotos! A página também está ótima, repleta dos mais expressivos rostos das artes brasileiras.
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