quarta-feira, 2 de julho de 2014

Franz Keppler em suas delirantes influências

A Suíte Número 1, de Bach, queima as cerdas do cello como um dedo raspando uma vulva em calorosas brasas... a licença poética, dura, saiu da mesma catarse de Franz Keppler. Na presença do vinho e da Suíte de Bach o autor construiu mais uma de suas obras primas - "Só entre Nós" - um triângulo amoroso desenhado à lápis carvão, permitindo-se borrar pela delicadeza de um sopro.

"Só entre Nós" é mais uma das peças cravejadas de sequelas psicológicas, fiel marca de Keppler. Quando tudo começa uma angústia consome toda a mente, um vazio parece emburrecer e a inquietude estala nossa íris, como a de uma câmera que tenta dar close na presa. É assim que resumo o sentimento ao início de um texto "keppleriniano"... uma dor que vai sendo medicada e desatinada ao senso poético da prosa.

Para contemplar com mais fervor o véu cálido do texto, o autor jorra com um tiro pinçadas de Caio Fernando Abreu e deixa ao fundo o ruído hipnotizante de Bach. Seus textos parecem não amanhecer... eles aparentam dor, solidão, medo... e nós, no conjunto de público, tentando resolver com a impotência da angústia. Isso tudo, pra mim, é de uma beleza imensurável!


O triângulo amoroso da história geme as dores de uma possível solidão, a permissão de uma vida incomum aos dogmas do amor... a fuga do vazio e um jato de lembranças. O amor de dois homens á volta de uma mulher são como cravos e canelas num chá, que aromatizam um encontro para tomarmos anis. Essa loucura de Keppler, quase incompreensível, me fascina. Dois homens e uma mulher, encontram nas suas histórias um bom motivo para revisitar as próprias vidas e entrelaçá-las, causando dependência uma da outra, vivendo como se fosse o sangue do outro.

A prosa dura, como se fosse recitada por soldados, calçam uma beleza retrógrada... como um encontro de generais russos que solfejam flores uns para os outros. Joca Andreazza é o regente dessa prosa, o diretor do betume cheiroso e sem cor alguma... belo pela singularidade e simplicidade do conjunto da obra. Joca é um rebocador da genialidade de Keppler, é um Rodin de uma argila pronta para ganhar forma. Ele da o som, a forma e o movimento!

Marcia Nemer-Jentzsch, Ricardo Henrique e Tiago Martelli encenam o triangulo, ponteando cada extremidade com o cume de suas delicadezas cênicas. Eles agregam doce e amargo numa mistura homogênea... o trabalho de direção é claramente visível, um ator depende do outro para a história de seus personagens, é lindo! Marcia tem a voz, Ricardo tem o timbre e Tiago tem o tom... Marcia tem a forma, Ricardo os passos e Tiago o olhar. Cada um recita o outro, como se estilhaçassem o próprio coração, dissecassem as veias.

A iluminação de André Lemes circula com afago as histórias e Ricardo Gali desenha bem esse circulo com um trabalho invencível de preparação corporal... os corpos exaurem a própria mente artística do trio. Tiago parece embebedado pelo texto e exauri um hipnotismo na vermelhidão azulada de seu olhar. Marcia não poupa o tronco e deixa passar com força pela pele branca e escorrer da boca um som tão belo, que ela deve chamar de voz. Ricardo tira das barbas o que Aquiles arranjava do tendão, a força e a violência dos atos combinados de recitar e caminhar com as palavras.

As loucuras poéticas e tônicas de Franz Keppler são um brilho para o teatro contemporâneo, que caminha entre o ontem e o hoje sem ridicularizar a arte!

"Só entre Nós" está em cartaz até 15 de Julho no Espaço Beta, do Sesc Consolação, em São Paulo. Em dias e horário formidáveis - Segundas e Terças, às 20h.

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