Não é surpresa alguma dizer que Maria Bethânia deixou seu toque interiorano num álbum. Apesar de viver numa grande cidade, a intérprete carrega a marca brejeira de suas raízes, o sotaque poético santamarense e agora cerca seus quintais com sons da melodia baiana. "Meus Quintais" é o título do último álbum lançado por Bethânia, pela gravadora Biscoito Fino, sem abrir mão das composições de Chico César, Roque Ferreira, Paulo Cesar Pinheiro, Adriana Calcanhoto, Tom Jobim e Dori Caymmi.
É quase que como uma menina lambuzando aos mãos de terra lá no fundo do quintal, quase à perder-se das vistas de sua mãe. E volta feliz, limpando as mãos na fina lã da calça, que protege do sereno do recôncavo, e recebendo um piscar conivente dos olhos e o sorriso de dobrar bochechas dessa mãe, que estirava-se na cadeira de balanço na varanda apenas para vigiar a filha. Uma longa sensação, essa que há de sentir ao ouvir "Meus Quintais".
Não há como ser tão técnico para falar de poesia, e Bethânia jamais poupou a poesia em seus trabalhos. Sobretudo agora, que desfia seus quintais. O álbum é muito íntimo, mas é um registro escancarado da doçura de uma artista baiana Enquanto desabrocham as faixas do CD, é possível deixar levar-se pelas canções e até mesmo notar a sensação de um anoitecer à luz do candeeiro sobreposto naquela mesma varanda, em que a mãe espreitava a volta de sua filha. Desta vez com a silhueta do coque branco de Canô repousado no ombro de sua menina.
Diante da petrificação das metrópoles, em que a extinção dos quintais dão lugar ao aperto dos casebres contemporâneos, a artista revela a imensidão de infâncias, sob a regência de sublimes composições, que cabem em seu preservado quintal. Como era em Santo Amaro!
Eu já estive naquele quintal de paredes brancas e janelas de madeira azul, sob os fachos do sol imperante no céu de Santo Amaro. Já estive no quintal das giras musicais, da voz fina e de acalanto de mãe Canô, da irmandade de Bethânia e Caetano, das poesias de Mabel, do cuidado de Irene, da preocupação de Bob e Rodrigo, do cheiro da comida de Clara e da saudade de Nicinha. O saudoso quintal de Santo Amaro, da casa de mãe Canô, ainda existe. Ao começar a ouvir o álbum "Meus Quintais" foi ele que veio aos meus olhos, sob as gargalhadas da família Veloso.
Uma reunião de caboclos é chamada e exaltada por Bethânia neste álbum, enquanto batucadas e violas parecem permitir que garças também participem da cantoria. É uma música quase espiritual, é um vibrato que resvala no insubstituível prato de Dona Edith, que jamais faltará nas criações de Maria Bethânia.
No disco há saudade, emoção, carinho, amor, raça, algo pueril, lágrimas e sorrisos... árvores chorando ao apanhar do vento, derramando galhos e folhas nos chãos daqueles inesquecíveis quintais, em que nós e Bethânia já pisoteamos no passado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário