A
Osesp, Orquestra Sinfônica de São Paulo, afinava seus instrumentos e riscava as
cerdas dos violinos, regidos ao primeiro-violino de Anca Gravis, enquanto
sopros e rufos ungiam à voz de um jovem tenor que levantava o público que via
ir longe, no Jockey Club de São Paulo, cantando o Hino Nacional do Brasil, de
forma a arrepiar aos toques das gotas que o céu derrubava na plateia. O show,
que aconteceu ontem (13) parecia seguir impecável, quando a cantora brasileira
Sandy embalou três canções ao lado do tenor mais famoso do mundo, Andrea
Bocelli, elevando o show a um tom irretocável.
Os
grandes sucessos da música clássica passaram pelo palco com Bocelli e aquela
abastada orquestra, junto a um coral afinadíssimo, levitaram a voz do tenor por
onde cavalos e batem suas patas. O cenário paulistano acendia suas luzes à
volta do espetáculo, nas margens do Pinheiros e reluzia o brilho da flauta
transversal de Andrea Bocelli que solfejava “Ave Maria”, num arranjo
emocionante, que confundia gotas de chuva às lágrimas.
“A
Traviata” anunciava-se pela finessi das sopranos e equalizava o som que
escapava do tom do público. Andrea Bocelli consegue levar a música clássica ao
mundo como se fosse a coisa mais natural e rotineira que ouvimos.
Andrea
Bocelli nasceu em Lajatico, na Itália, e de berço foi premiado com o gogó
cristalizado dos italianos. Os evidentes problemas de visão o perseguiram por
toda a infância, e Bocelli recebeu o diagnóstico do glaucoma. Aos doze anos,
enquanto jogava futebol, levou uma pancada na cabeça e perdeu completamente a
visão. A única coisa que o consolava era a música.
Com
seis anos começou a aprender a tocar piano, flauta, saxofone, trompete, harpa,
violão e bateria, e tudo isso o levaria para o auge em alguns anos. Na igreja
ele tocava órgão, aos doze anos, quando perdeu a visão, ganhou o primeiro
prêmio musical. Na Universidade de Pisa formou-se em Direito, mas o canto o
seduziu com ternura. Bocelli arriscou as óperas, passeou por renomados
compositores, cantou ao Papa João Paulo II e foi recebido com honra pelo mundo
inteiro, cadenciando a música clássica ao gosto de diversos públicos.
No
ano passado Bocelli lançou o DVD do show que realizou no Central Park, em Nova
Iorque, na ocasião a chuva também deu as caras. Acho, inclusive, que o tenor é
“cabeça de chuva”, a chuva grossa começou a penetrar o show e a voz de Andrea
Bocelli parecia aquecer ainda mais ao vento que soprava pelos campos do Jockey.
O Brasil o ama e acho que ele ainda nos deve a gravação de um DVD por aqui.
É
interessante como a perda da visão não tira-lhe o equilíbrio no palco, Andrea tem
a direção total do show, quando sentimos sua percepção ao público e ao som que
o rodeia. A canção, de fato, o envolve com um cuidado maternal e seus olhos
passam a enxergar pelos ouvidos e nós pela nobreza de sua voz.
“Sole
Mio” e a “Tarantella” brindavam sua italianidade, assim como “Tristeza”, o
sambinha brasileiro, carimbava sua cidadania tropical. Ao lado de Sandy
reafirmou sua brasilidade entoando “Garota de Ipanema”, como se fosse um tenor
bossanovense. Sandy afinava a voz com uma doçura e combinava sua delicadeza ao
timbre liso que dava graça feminina ao espetáculo. Andrea a carregou no colo,
como se carregasse o público nas mãos.
Uma
ária do “Turandot”, de Puccini exalava das batutas do maestro Solielson Goethe,
findando o show, que passava o ar espetacular da harmonia dos violinos à
elegante spalla Ana Gravis.
É
preciso despertar ao público que frequenta shows que respeito faz-se, além da
audição, à pontualidade do espetáculo. O público parecia chegar na hora que bem
quisesse e perambulava pelas fileiras procurando lugares marcados enquanto o
espetáculo já registrava um avanço distante do início. Comprar um ingresso no
valor de 2 mil reais para assentar à área Premium do espetáculo não é o mesmo
que dar-lhes a liberdade de faltar com respeito ao artista e ao público que já
está acomodado, chegando com atrasos abusivos. O desrespeito acentuava-se
quando os staffs insistiam em procurar estes lugares para acomodar aos
retardatários. É preciso criar um modelo de respeito para que o público que não
conhece uma das mais antigas invenções do mundo, o relógio, aprenda a aferir o
tempo com mais sabedoria. Ir a um show não deve ser uma questão de status e
liberdade de movimentação. Ir a um show deve representar respeito a música.
Chegar
no horário do show não é ultrapassar o intenso trânsito de São Paulo. Chegar no
horário é uma obrigação e uma questão ética. Não é preciso ser britânico, basta
mostrar que o brasileiro é muito mais do que a irreverência de comprar
ingressos caros, é fazê-lo ser elegante, independente de qualquer coisa.
A
saída foi conturbada demais, a organização foi um tanto falha e a alimentação
sem capricho, como sempre nestes shows, com preços absurdamente abusivos.
Tentem respeitar mais o espaço onde a música habita? É possível, será?
O
show foi uma produção da Dançar Marketing e reuniu um público numeroso em torno
de um dos mais importantes artistas do mundo. A história de vida e o empenho
musical de Bocelli confundem-se lindamente com o seu sucesso.