segunda-feira, 7 de maio de 2012

Virada Cultural em São Paulo dissolve sua programação no ridículo popular



O grande espetáculo a céu aberto, que enlaça culturalmente a cidade de São Paulo em 24 horas de cultura, tem seus prós e contras registrados no decorrer de sua programação. Entre ruas escuras, pivetes assaltantes, volúveis senhoras sem escrúpulo, grupos de boa índole, solitários à procura de alguém, bêbados ancorados entre as esquinas, jovens desperdiçando-se pelas sarjetas, famílias e gente do bem e do mal, a programação rolou nos dois dias de música e cultura com consagrados nomes e bandinhas alternativas que arrebataram milhares de pessoas pelo centro da cidade, dando tom à saudosos pontos turísticos, debandados nos dias comuns da maior cidade do país. Gilberto Gil, Ângela e Cauby, Titãs, Os  Mutantes, Gretchen, Jair Rodrigues, Leci Brandão e um palco em homenagem a Elis, foram algumas das atrações musicais dessa edição.

O Viaduto do Chá revelava uma das mais lindas fotografias paulistanas, ao cair da noite a iluminação mostrou a paulicéia cinematográfica que despontava Arnaldo Batista abrindo os trabalhos no renovado Teatro Municipal, que em seguida trouxe as estrelas maiores da música brasileira, Cauby Peixoto e Ângela Maria, com um arranjo musical monumental enriquecendo o Municipal com os acordes de uma orquestra e do público que gritava emoção com aplausos e o calor da recordação de grandes sucessos. Cauby e Ângela estavam deslumbrantes, e receberam a surpresa de Elis Regina, num vídeo gravado especialmente para Ângela Maria, seu ícone de influência musical. Edy Star fechou a noite no Municipal com seu rock cheio de brilhos e à memória de Raul Seixas, com a surpresa da presença de Emílio Santiago. No dia seguinte o palco abriu-se para Badi Assad e o Balé do Teatro Castro Alves, de Salvador. Além de Zezé Motta e o samba de Leci Brandão, que vestiu o teatro de entusiasmo e ritmo. Foi especial ver Leci com muita energia no palco e levantando um grupinho de senhoras que sambavam numa das frisas, e que empolgou a todo o público a cantar de pé esquentando os tacos do carpete com muito samba.

Lá fora o coro comia em todos os sentidos. A beleza ia desabrochando e distribuindo notas musicais até pelos ares. No mesmo Viaduto iluminado um piano içado à metros de altura era tocado por um maestro, lá embaixo um palco recebia orquestras e dança. O Pátio do Colégio foi condecorado com peças teatrais, Denise Fraga inaugurou o palco com “Sem Pensar”, e por ali também passou “A Alma Imoral” e “Luis Antonio – Gabriela”, e “Os Sete Gatinhos”, obra de Nelson Rodrigues, que por sinal foi horrivelmente interpretada. A Praça da Sé foi obrigada a receber um time de stand up comedy, logo em frente a Catedral. Imagino que as obras sacras afixadas nos mármores esculturais da igreja sentiram vontade de se desprenderem e correr daquele show de horrores, não só dos contadores de “comédia”, mas do público que ali ria. Uma gorda fatia deste público que ria dividia a atenção para o palco e a garrafa de química líquida que tomava de mãos em mãos. Mesmo com o acesso de imprensa, preferi, por vezes, dividir o espaço com aquela mansidão de gente que espremia-se em lajotas que prendiam nossos pés em litros e litros de urina e vômito. A fumaça cortinava os palcos, cigarros e maconhas atraíam a molecada que ainda nem brincou de carrinhos e bonecas em casa. Eu queria saber onde estão as mães que permitem que suas gracinhas passem madrugada afora, certamente divertem-se em casa fabricando mais beldades para disputarem espaço entre civilizados e cambadas.
O stand up foi uma boa sacada para a Virada, tirou o riso de muita gente, inclusive de um senhor cego que procurava lugar para estacionar sua bengala, de uma jovem que insistia em desmaiar por onde escorava, da juventude interessada, e despreparada. Tive pouca paciência de ser espectador de textos que já ouvi milhares de vezes nos teatros. Eu gostaria de entender que espécie de stand up está se fazendo no Brasil, pois não é nenhum pouco do sentido real da comédia em pé. Stand up não se faz mais na inexperiência dessa galera jovem que pega em mãos um microfone e relembra um texto ensaiado em casa. Stand up não é texto, primeiro é preciso aprender a fazer rir, para depois encarar um palco. Bruno Motta e Robson Nunes precisam renovar suas performances, não é porque estamos num espetáculo aberto e gratuito que seremos levados aos textos já batidos em teatro e TV, e sem um pingo de graça, pelo menos pra mim.  Das duas, uma, ou sou eu o chato, ou são eles. O fato é que sou totalmente desinteressado por essa espécie de stand up que se tem feito por aqui. Eu acho um saco ser espectador de quem não sabe fazer humor.

Mais de 60 pessoas deram entrada na Santa Casa de Misericórdia, que fica na região central, com problemas relacionados à extravagância no evento. Abancados aos monumentos históricos jovens recheavam seus fígados de cachaças baratas, bebidas avermelhadas, das quais eles chamam de vinho. Até chegaram a me oferecer. Nas sarjetas, jovens que nem desfrutaram de sua adolescência, entopem-se de qualquer droga que encontram pela frente. Ali ao lado do palco, um que tocava um rock, e que levava empolgante o público, um grupo de pivetes e malandros, com suas toucas bem apertadas, as calças de moletom apertando os tornozelos, saindo à boca canções que carimbam a morte da cultura popular, distribuíam socos em quem passava, roubando bonés, óculos e celulares. Saíam contentes, vangloriando o roubo, abaixo da lua próxima, de um evento voltado à cultura, onde foi investido o dinheiro daquele próprio público que estava presente, e não presente. Gangue de ratos, oportunos e burros. Foram pegos na madrugada e detidos, após fazer miséria por onde passavam. Ladrõezinhos pés de chinelo. Fui submetido a cheirar a droga que eu não fumei, a pisar numa urina que não era minha, a dançar aquele ritmo ridículo que tocava num boteco, o “eu quero tchu, eu quero tcha”, somente para passar com maior discrição (que ironia) entre aquele público que bebia sua mistura coloral, que eles chamavam de uísque.
Meninas de shorts curtos, arrepiando as pernas ao friozinho que deitava-se pela metrópole, que recusava-se adormecer para dançar ao burlesco som de Gretchen, que levou o público ao delírio no palco Cabaré, que também recebeu Rita Cadilac, enquanto do outro lado, em frente ao suntuoso relógio da Estação Júlio Prestes, cheio de reggae e letra, Gilberto Gil encerrava a Virada Cultural, com maior índice de falta de cultura de todos os tempos. Gil não tem nada a ver com isso, é claro! Cantou sucessos de sua carreira e levantou o público que salteava ao swing baiano do cantor, além de alguns cigarrinhos que iam queimando em nossas narinas. Foram incontáveis palcos e atrações disponíveis para o público, alocadas pelo centro e distribuídas também em Sescs e centros de cultura de toda a cidade. Teve até Byafra e o imortal Serguei, Tetê Spíndola, os nigerianos Seun Kuti & Egypt 80, música eletrônica, luta livre, cinema e carros antigos. O transporte público também recebeu cultura, e funcionou como nunca antes. É uma bela maquiagem do funcionalismo que não existe. Chega a ser hipocrisia.

Entre as alegorias de escolas de sambas, que esculpiam os jardins do Anhangabaú, passavam roqueiros e fanáticos pela música eletrônica, exaltada nas mãos de bons DJs. As vassouras vinham ao final do dia recolhendo a ignorância daquele povo que não sabe receber a oferta cultural. No Minhocão, a Galinhada do chef Alex Atala voou como se estivesse viva, não houve organização e o prato virou um sopão daqueles aguados que o prefeito manda distribuir nos viadutos aos mendigos, que, por sinal, perderam seu chão frio por onde dormem diariamente, onde bebem sua caninha e fumam as bitucas arremessadas ao chão. Eram 24 horas voltadas à diversidade cultural, ao som dos bolivianos de cocares, das estátuas vivas, do sol que refletia em cores os vitrais do belo Teatro Municipal, dos hippies que arrematavam seus brincos e pulseiras, do pianista que voltava às alturas, a bailarina de vermelho, e o mendigo ia tentando um cantinho para repousar, entre pés cansados da multidão, urinas, pó e a saudade de Tinoco, que nos deixou às vésperas de sua apresentação.

A cultura tentou penetrar pela proposta política de devolver ao público os impostos exagerados a nós cobrados, a criançada tentava ouvir o que vinha de música pela frente, o mundo parecia ter pousado em peso no centro de São Paulo. Garrafas quebradas, sotaques diversos, beijos e amassos, bancas de comidas regionais, a morte de uma menina por overdose, o policial federal que atirou a esmo, a prefeitura tão corrupta teatralmente e ironicamente alocada em frente ao Municipal, a programação horrivelmente desenhada espedaçando-se pelas ruas. As atrações iam findando-se, cadeiras esvaziando o calor do público, o samba aquecendo os tambores no Largo de São Francisco, e deixando o ritmo pra próxima, que eu e certamente metade da população paulista estima melhoras. Essa foi uma edição doente da Virada, que está de cama, naquela Santa Casa, tão santa, que atendeu aos meninos e meninas de fígados jovens e destruídos, marginalizada em volta das monumentais igrejas, violentada nas esquinas assaltadas de São Paulo. Não somos uma cidade violenta. Somos uma metrópole violentada. Vadiamente habitada, inconscientemente monopolizada, canalhamente politizada, avacalhada na mente jovem, mas ainda sim monumentalmente bela. 

Fotos: Ricardo Matsukawa/Terra; Mitsuo; Fernando Borges/Terra; Angelina Yamada

Um comentário:

  1. Que descrição incrível sofre o Evento! Infelizmente,as pessoas não estão preparadas para a Cultura...e isso um tanto me entristece.

    Parabéns Nyldo!

    Abraços.
    Grace.

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