O grande espetáculo a céu aberto, que enlaça culturalmente a cidade de São Paulo em 24 horas de cultura, tem seus prós e contras registrados no decorrer de sua programação. Entre ruas escuras, pivetes assaltantes, volúveis senhoras sem escrúpulo, grupos de boa índole, solitários à procura de alguém, bêbados ancorados entre as esquinas, jovens desperdiçando-se pelas sarjetas, famílias e gente do bem e do mal, a programação rolou nos dois dias de música e cultura com consagrados nomes e bandinhas alternativas que arrebataram milhares de pessoas pelo centro da cidade, dando tom à saudosos pontos turísticos, debandados nos dias comuns da maior cidade do país. Gilberto Gil, Ângela e Cauby, Titãs, Os Mutantes, Gretchen, Jair Rodrigues, Leci Brandão e um palco em homenagem a Elis, foram algumas das atrações musicais dessa edição.
O
Viaduto do Chá revelava uma das mais lindas fotografias paulistanas, ao cair da
noite a iluminação mostrou a paulicéia cinematográfica que despontava Arnaldo
Batista abrindo os trabalhos no renovado Teatro Municipal, que em seguida
trouxe as estrelas maiores da música brasileira, Cauby Peixoto e Ângela Maria,
com um arranjo musical monumental enriquecendo o Municipal com os acordes de
uma orquestra e do público que gritava emoção com aplausos e o calor da
recordação de grandes sucessos. Cauby e Ângela estavam deslumbrantes, e
receberam a surpresa de Elis Regina, num vídeo gravado especialmente para
Ângela Maria, seu ícone de influência musical. Edy Star fechou a noite no
Municipal com seu rock cheio de brilhos e à memória de Raul Seixas, com a
surpresa da presença de Emílio Santiago. No dia seguinte o palco abriu-se para
Badi Assad e o Balé do Teatro Castro Alves, de Salvador. Além de Zezé Motta e o
samba de Leci Brandão, que vestiu o teatro de entusiasmo e ritmo. Foi especial
ver Leci com muita energia no palco e levantando um grupinho de senhoras que
sambavam numa das frisas, e que empolgou a todo o público a cantar de pé
esquentando os tacos do carpete com muito samba.
Lá
fora o coro comia em todos os sentidos. A beleza ia desabrochando e
distribuindo notas musicais até pelos ares. No mesmo Viaduto iluminado um piano
içado à metros de altura era tocado por um maestro, lá embaixo um palco recebia
orquestras e dança. O Pátio do Colégio foi condecorado com peças teatrais,
Denise Fraga inaugurou o palco com “Sem Pensar”, e por ali também passou “A
Alma Imoral” e “Luis Antonio – Gabriela”, e “Os Sete Gatinhos”, obra de Nelson
Rodrigues, que por sinal foi horrivelmente interpretada. A Praça da Sé foi
obrigada a receber um time de stand up comedy, logo em frente a Catedral.
Imagino que as obras sacras afixadas nos mármores esculturais da igreja
sentiram vontade de se desprenderem e correr daquele show de horrores, não só
dos contadores de “comédia”, mas do público que ali ria. Uma gorda fatia deste
público que ria dividia a atenção para o palco e a garrafa de química líquida
que tomava de mãos em mãos. Mesmo com o acesso de imprensa, preferi, por vezes,
dividir o espaço com aquela mansidão de gente que espremia-se em lajotas que
prendiam nossos pés em litros e litros de urina e vômito. A fumaça cortinava os
palcos, cigarros e maconhas atraíam a molecada que ainda nem brincou de
carrinhos e bonecas em casa. Eu queria saber onde estão as mães que permitem
que suas gracinhas passem madrugada afora, certamente divertem-se em casa
fabricando mais beldades para disputarem espaço entre civilizados e cambadas.
O
stand up foi uma boa sacada para a Virada, tirou o riso de muita gente,
inclusive de um senhor cego que procurava lugar para estacionar sua bengala, de
uma jovem que insistia em desmaiar por onde escorava, da juventude interessada,
e despreparada. Tive pouca paciência de ser espectador de textos que já ouvi
milhares de vezes nos teatros. Eu gostaria de entender que espécie de stand up
está se fazendo no Brasil, pois não é nenhum pouco do sentido real da comédia
em pé. Stand up não se faz mais na inexperiência dessa galera jovem que pega em
mãos um microfone e relembra um texto ensaiado em casa. Stand up não é texto,
primeiro é preciso aprender a fazer rir, para depois encarar um palco. Bruno
Motta e Robson Nunes precisam renovar suas performances, não é porque estamos
num espetáculo aberto e gratuito que seremos levados aos textos já batidos em
teatro e TV, e sem um pingo de graça, pelo menos pra mim. Das duas, uma, ou sou eu o chato, ou são
eles. O fato é que sou totalmente desinteressado por essa espécie de stand up
que se tem feito por aqui. Eu acho um saco ser espectador de quem não sabe
fazer humor.
Mais
de 60 pessoas deram entrada na Santa Casa de Misericórdia, que fica na região
central, com problemas relacionados à extravagância no evento. Abancados aos
monumentos históricos jovens recheavam seus fígados de cachaças baratas,
bebidas avermelhadas, das quais eles chamam de vinho. Até chegaram a me
oferecer. Nas sarjetas, jovens que nem desfrutaram de sua adolescência,
entopem-se de qualquer droga que encontram pela frente. Ali ao lado do palco,
um que tocava um rock, e que levava empolgante o público, um grupo de pivetes e
malandros, com suas toucas bem apertadas, as calças de moletom apertando os
tornozelos, saindo à boca canções que carimbam a morte da cultura popular, distribuíam
socos em quem passava, roubando bonés, óculos e celulares. Saíam contentes,
vangloriando o roubo, abaixo da lua próxima, de um evento voltado à cultura,
onde foi investido o dinheiro daquele próprio público que estava presente, e
não presente. Gangue de ratos, oportunos e burros. Foram pegos na madrugada e
detidos, após fazer miséria por onde passavam. Ladrõezinhos pés de chinelo. Fui
submetido a cheirar a droga que eu não fumei, a pisar numa urina que não era
minha, a dançar aquele ritmo ridículo que tocava num boteco, o “eu quero tchu,
eu quero tcha”, somente para passar com maior discrição (que ironia) entre
aquele público que bebia sua mistura coloral, que eles chamavam de uísque.
Meninas
de shorts curtos, arrepiando as pernas ao friozinho que deitava-se pela
metrópole, que recusava-se adormecer para dançar ao burlesco som de Gretchen,
que levou o público ao delírio no palco Cabaré, que também recebeu Rita
Cadilac, enquanto do outro lado, em frente ao suntuoso relógio da Estação Júlio
Prestes, cheio de reggae e letra, Gilberto Gil encerrava a Virada Cultural, com
maior índice de falta de cultura de todos os tempos. Gil não tem nada a ver com
isso, é claro! Cantou sucessos de sua carreira e levantou o público que
salteava ao swing baiano do cantor, além de alguns cigarrinhos que iam
queimando em nossas narinas. Foram incontáveis palcos e atrações disponíveis
para o público, alocadas pelo centro e distribuídas também em Sescs e centros
de cultura de toda a cidade. Teve até Byafra e o imortal Serguei, Tetê
Spíndola, os nigerianos Seun Kuti & Egypt 80, música eletrônica, luta
livre, cinema e carros antigos. O transporte público também recebeu cultura, e
funcionou como nunca antes. É uma bela maquiagem do funcionalismo que não
existe. Chega a ser hipocrisia.
Entre as alegorias de escolas de sambas, que esculpiam os
jardins do Anhangabaú, passavam roqueiros e fanáticos pela música eletrônica,
exaltada nas mãos de bons DJs. As vassouras vinham ao final do dia recolhendo a
ignorância daquele povo que não sabe receber a oferta cultural. No Minhocão, a
Galinhada do chef Alex Atala voou como se estivesse viva, não houve organização
e o prato virou um sopão daqueles aguados que o prefeito manda distribuir nos
viadutos aos mendigos, que, por sinal, perderam seu chão frio por onde dormem
diariamente, onde bebem sua caninha e fumam as bitucas arremessadas ao chão.
Eram 24 horas voltadas à diversidade cultural, ao som dos bolivianos de
cocares, das estátuas vivas, do sol que refletia em cores os vitrais do belo Teatro
Municipal, dos hippies que arrematavam seus brincos e pulseiras, do pianista
que voltava às alturas, a bailarina de vermelho, e o mendigo ia tentando um
cantinho para repousar, entre pés cansados da multidão, urinas, pó e a saudade
de Tinoco, que nos deixou às vésperas de sua apresentação.
A
cultura tentou penetrar pela proposta política de devolver ao público os
impostos exagerados a nós cobrados, a criançada tentava ouvir o que vinha de
música pela frente, o mundo parecia ter pousado em peso no centro de São Paulo.
Garrafas quebradas, sotaques diversos, beijos e amassos, bancas de comidas
regionais, a morte de uma menina por overdose, o policial federal que atirou a
esmo, a prefeitura tão corrupta teatralmente e ironicamente alocada em frente
ao Municipal, a programação horrivelmente desenhada espedaçando-se pelas ruas.
As atrações iam findando-se, cadeiras esvaziando o calor do público, o samba
aquecendo os tambores no Largo de São Francisco, e deixando o ritmo pra
próxima, que eu e certamente metade da população paulista estima melhoras. Essa
foi uma edição doente da Virada, que está de cama, naquela Santa Casa, tão
santa, que atendeu aos meninos e meninas de fígados jovens e destruídos,
marginalizada em volta das monumentais igrejas, violentada nas esquinas
assaltadas de São Paulo. Não somos uma cidade violenta. Somos uma metrópole
violentada. Vadiamente habitada, inconscientemente monopolizada, canalhamente
politizada, avacalhada na mente jovem, mas ainda sim monumentalmente bela.
Fotos: Ricardo Matsukawa/Terra; Mitsuo; Fernando Borges/Terra; Angelina Yamada
Que descrição incrível sofre o Evento! Infelizmente,as pessoas não estão preparadas para a Cultura...e isso um tanto me entristece.
ResponderExcluirParabéns Nyldo!
Abraços.
Grace.