Os
shows, que lançaram o DVD “Micróbio Vivo”, aconteceram no último final de
semana, em São Paulo, no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros. Adriana
Calcanhotto tira sambas e revela seu traço atípico de gaúcha, mas não o deixa
de lado. Encena, ginga e desta vez deixa o violão em outras mãos. A cantora
embala canções de sua própria autoria e relembra Lupicínio Rodrigues.
O
Sesc Pinheiros já tornou-se minha segunda casa, sempre com uma programação de tirar
o chapéu, desta vez trouxe a sutileza e encanto de Adriana Calcanhotto, a
gaúcha que veio cantar seus sambas.
Quando
as cortinas se abriram o músico Domenico Lancelotti estava arranhando a
película de um surdo deitado no chão, o tocando como um homem apaixonado
encontrando à esposa com as mãos. Em sua bateria não há pratos, e ele ainda
dispara uns sons de um mpc que fica no chão. Mpc (Media Player Classic) é um
equipamento de onde se tiram sons eletrônicos, de botões. Pedro Sá fazia uma
base em seu violão, com um tom fechado, seguindo o baixo acústico de Alberto
Continentino. Fiquei emocionado e embalado pelo samba-canção que chegava na voz
e nos pés deslizantes de Adriana Calcanhotto. “Eu vivo a sorrir” foi o som que
levou-me a construir o roteiro do documentário “Bravo! A Arte do Humor”, que
dirigi no ano passado. Essa música é um mantra!
Calcanhotto
parece uma moça tímida, mas o palco é seu picadeiro. Ela fica solta, dançante,
encantadora. Preto é a cor do figurino de todos os músicos, mas tudo parece ter
uma cor, um tom diferenciado e que brilha debaixo de seus cabelos, desta vez
mais compridos, porém lisos e contidos sob desenho de sua bela face. Eu a vejo
num ápice de beleza e também de sentimentalismo musical.
As
canções foram nascendo em diversos lugares, sendo compostas, mas ela não podia
tocar violão devido a um cisto em seu braço. Pela primeira vez sob ao palco sem
o instrumento em punho. Em 2011 o CD “O Micróbio do Samba”, foi lançado, e
agora canções deste álbum estão sendo distribuídas pelo mundo, numa turnê que
começou bela, na Europa, sob o toque luso de Lisboa e a lisura da Itália.
Adriana
Calcanhotto cantava na noite de Porto Alegre, cidade que lhe estreou como vida.
Filha de mãe bailarina e pai baterista, desde a infância teve a arte como seu
estímulo mais próximo. Em casa tinha garagem para dois carros, que ficavam do
lado de fora, pois o espaço dividia as duas baterias, das duas bandas em que o
pai tocava. Aos 6 anos de idade ganhou o primeiro violão, e jamais o abandonou.
A não ser agora, que não é um abandono, mas uma licença.
Em
sua voz começaram a passar composições famosas, mas com um arranjo pitoresco.
Ela nunca seguiu à risca uma partitura, pois cria a sua própria. Em 1990 lançou
o primeiro disco, “Enguiço”, com uma canção de Caetano Veloso, e o sucesso na
voz de Carmem Miranda, “Disseram que voltei americanizada”, além de “Nunca”, de
Lupicínio Rodrigues, e outras, como também de Roberto e Erasmo. Com o prêmio
Sharp nas mãos, em 91, como revelação feminina, deu voz às próprias canções, e
encontrou nas rádios seu sucesso “Mentiras”. Calcanhotto nunca fez questão de
lançar álbuns em série, ela vai com calma, e leva ao mundo seu romantismo ao
cristal vocal que a abençoa, como o que também afina belamente os timbres de Gal
e Marisa Monte. Calcanhotto é companheira da cineasta Suzana de Moraes, filha
de Vinícius de Moraes, e assumiu o relacionamento com coragem e carinho.
Com
a canção de Péricles Cavalcanti, “Dos Prazeres, das canções”, Adriana
Calcanhotto deita sobre o rosto um chapéu, e nos remete imediatamente aos
nobres sambistas que assim velavam-se. Sambista que era sambista, tinha um
similar ao “Panamá” na cabeça.
“Esses
Moços”, do conterrâneo Lupicínio Rodrigues também caiu ao palco. Inclusive, ele
dizia que trazia no sangue o “micróbio do samba”, e deste depoimento
Calcanhotto fez a origem do nome de seu álbum. Paulinho da Viola foi lembrado
com “Argumento”, e suas próprias composições rasgaram um delicioso samba com
“Tão chic” e “Mais perfumado”, este que lhe rendeu indicação ao Grammy. Aliás,
estes prêmios estrangeiros apenas indicam os brasileiros, mas negam-se a
reverenciar a genialidade e maestria de nossos músicos.
Adriana
também tocou uma caixinha de fósforo, chacoalhou os palitos lá dentro e fez um
solo lindo, como fazia Élton Medeiros, e Adoniran Barbosa. Ela também tocou um
prato, como fazia Dona Edith do Prato. Com um microfone multidirecional, como
aqueles das antigas rádios, ela deu voz a todo o teatro e sem dúvidas tocou
individualmente o público. Cheia de instrumentos em uma mesa, ela violou o
estatuto do samba com beleza. Saiu dos apenas batuques e pandeiros, e colocou
ruídos e até mesmo com um secador de cabelos levou para os ares as partituras
do violonista. Com xícaras ela fez o som de uma senhora lavando louças, na
canção “Deixa Gueixa”.
Tudo
milimetricamente ensaiado, de uma beleza estonteante. Eu não vou dizer música
por música que foi cantada no show, porque isso fica a encargo do álbum em
contar cantando, é belo, cada samba é uma poesia.
Adriana
Calcanhotto é uma artista completa, pois ela encena suas canções, como faz uma
grande intérprete, e deixa doce suas composições com uma das mais lindas vozes
da música brasileira. O show é uma grande criação, um bálsamo para o samba, em
acordes e ruídos, bons ruídos. Nada foge do compasso, nem de um tom que vai
oscilando em ritmos, mas tudo dentro do samba, repicando num toque de
marchinha, algo também um pouco jazzista, trovador, bossanovense e até
guitarradas de rock, nada muito absurdo. Uma chuva de papéis brilhantes
anunciava o fim do show, ela diverte-se no palco, é incrível.
O
público cantou junto quando ela despediu-se ao som do sucesso “Vambora”, isso
foi lindo!
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