sexta-feira, 22 de junho de 2012

Maria Bethânia em seu Oásis de canções e poesia


Quando comecei a ouvir o último álbum de Maria Bethânia, lançado em março, o “Oásis de Bethânia”, produção de Jorge Helder e da própria intérprete, me transpus num caminho inverso ao que o mundo caminha, o das catástrofes e desapegos. Bethânia registra fé, amor e sutileza numa seleção musical cheia de batucadas e palavras. É como se ouvisse uma voz do recôncavo asilar-se dentro de nós. O álbum foi lançado neste ano, com dez canções capazes de embriagar qualquer um de som e sensibilidade.

Ouvi as faixas em todas as ordens, do início para o fim, do fim para o início e a sensação é de um caminhar pelo deserto árido que há em nós, como se daquele chão infértil pudessem ressurgir mato, com cheiro e tom de grama fértil.

O dedilhar dos instrumentos e as palmadas no couro de cada batuque traçam um Brasil cheio de sons encorpado à voz de uma das artistas mais nobres dos palcos. Bethânia é uma esfinge teatral, um orixá vivo, um terço em extrema fusão com as mãos do homem de fé. Sente-se saudades ouvindo as canções, saudades não sei de que, talvez saudades da música que permite aos instrumentos sua exibição orquestral encaixando a doce voz à cada verso e nota. O Oásis é assim.

Enquanto voava à bordo de uma pequena aeronave, entre São Paulo e Brasília, fui ouvindo, sei lá depois de quantas vezes, o Oásis, e olhando pela janela do avião avistava a letra das canções passarem por debaixo das nuvens e por cima de cada palmo de chão e rios. E assim continuei escrevendo sobre o “Oásis de Bethânia”, permitindo-me entrar neste espaço cheio de palavras e do registro vocal encanteiro de uma mulher sertaneja, que carrega no timbre e nos passos os sons de sua infância e a verdade da poesia.
No violão algumas faixas falam de amor, sem citar o amor, sem adocicar demais o sentimentalismo. Com acentuações e variações de timbre, Bethânia raspa a perfeição, tira-lhe medidas acima disso e entrega-nos uma obra de arte, um movimento de encontro entre as músicas da porta de casa no final da tarde, às velas da mesa à noitinha, e do luso portuário dos fados.

Ouvindo “Casablanca”, de Roque Ferreira, esqueço-me num repente em um bar à meia luz, com um pianista tocando para o casal que ficou e eu irresoluto a ir embora. Chega em um momento que Bethânia deixa a voz para um saxofone imperar seu belo som. E passando de faixa “Calmaria”, de Jota Veloso, entra com um berimbau e a voz a cappella de Bethânia, alternando em seguida as poucas notas do instrumento e seu chocalho, para então nos dar o brinde de “Não Sei Quantas Almas Tenho”, texto de Bernardo Soares, com edição do mestre Fauzi Arap, em recital. Eu não estava no bar, eu ainda estava no avião, mas este álbum nos faz caminhar por onde nem passamos ainda, e mesmo assim sentir falta daquilo que nem vimos, ou tocamos.

Na gravação de “O Velho Francisco”, de Chico Buarque, o arranjo é nacionalizado e regionalizado com beleza por Lenine, assim como o ritmo impulsionado em “Vive”, canção inédita de Djavan, arranjada por ele na faixa.

“Fado”, de Roque Ferreira, é de fato um passeio de barco pelo Tejo, a canção tem um texto literário, é uma resenha do mar luso e seus amores. Ao piano, “Barulho”, também de Roque, desperta para o interior do homem, arrancando de Bethânia o romantismo contemporâneo das relações e a paz que busca qualquer amor, como diz uma das frases dessa canção: “eu só sei amar direito, nasci com esse defeito no coração”.
Quando assisti ao show “Amor, Festa e Devoção”, seu penúltimo álbum, via o saltar de pétalas vermelhas nos pés de Bethânia, e sua história contada pelos doces versos que desenhavam Canô em música e poesia. O “Oásis de Bethânia” é quase isso, mas traz uma autoria própria, mesmo que com canções de outros. Neste CD ela ousou escrever, e deu voz ao seu texto “Carta de Amor”, sobre a canção de Paulo César Pinheiro, bailando orixás e santos num intenso poema cantado e recitado, ao fundo, palmas, por dentro das letras batidas de pandeiro e do coração de quem ouve. O que dizer de uma das frases dessa canção, que risca o prato de Dona Edith – “medo não me alcança, no deserto me acho, faço cobra morder o rabo, escorpião virar pirilampo... É tempo de reparar na balança de nobre cobre que o rei equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a justiça”. Essa canção é um grito, um som que vibra o extinto.

Bethânia com sua voz, e o conjunto cênico, me derruba, ao mesmo tempo que faz minar água de um deserto árido, nuns acordes de amor e fé. A abelha-rainha sabe tirar mel da terra, brotar lágrimas de olhos secos e som do oco.

“Oásis de Bethânia”, além de estar à venda em CD, também ganhou uma impecável versão em LP. Os shows devem viajar à partir do próximo semestre, por enquanto podemos nos deliciar com uma turnê em que Bethânia canta canções de Chico Buarque de Holanda.

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