segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Córtex está para a anatomia à mesma importância que para o teatro


Estreou em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Brasil, o Córtex, ou a Córtex, enfim, seja para a anatomia, para a literatura, ou para o teatro, este brilhante espetáculo saiu do oásis mental de Franz Keppler, foi parar na bela estética direção de Nelson Baskerville ao impagável ator Otávio Martins, produzido com primor por Ed Júlio. O espetáculo acontece num abalo à mente humana, que transpassa essa emoção para nós, o público.

Córtex já tem um título rápido e funciona com o tom daqueles seriados cheios de surpresas, porém com a deleitosa proximidade de acontecer no palco de um teatro.

Franz Keppler com sua mente trabalhada pelo vigor psicológico, rabiscou mais um de seus intensos roteiros para adentrar à transição dos temas antropológicos para a arte. Trocando balas entre o sentimento, o medo, a culpa e a consciência, Córtex lava-se nas águas de um espetáculo solo, que depende constantemente do olhar do público e do ardor e entrega de Otávio Martins.

Ao chegarmos à sala do espetáculo, Otávio já está no palco, trajado por um figurino em off-white, com um corte elegante, notado por uma gravata borboleta e um paletó acentuando o saiote de tule que designa a projeção de sua mulher em seus sentimentos. Otávio caminha pelo palco, travando folhas secas entre seus pés descalços e o chão, atravessando este atrito ao som de pássaros e tropeços do vento em folhagens, ainda sem texto na boca, mas com a fala permanente em seus olhos e no fitar das mãos. 

O silêncio que paira o espetáculo tende a sublinhar as expressões clinicas de Otávio que vão contornando nossas mentes e especulando o que está além do palco.

A mulher daquele homem que emite em suas palavras e em sua memória, é representada por uma boneca branca de pano, sem olhos, nem boca, apenas com o corpo, necessário para que projetemos nela sua representatividade. Com o avanço de um acidente vascular, o cérebro vai ocupando-se de desfigurar o interior e o exterior desta mulher, que espelha sua dor no sofrimento de seu companheiro. O lindo jardim de sua casa agora é o palco de Córtex, num emaranhado cinematográfico de folhagens derramadas umas sobre as outras e de galhos escondendo uma história que ora engana, ora é fiel.
A morte da mulher, fora ou não cometida pelo marido? A especulação de um interrogatório ocupado pelo próprio ator o vincula ao sumiço da esposa, porém em uma outra vértice altera o rumo da história. O sofrimento pelo desaparecimento dela é o grande impacto em seu cotidiano, que já era sofrido com a doença da mulher e parece acentuar com o sumiço de quem perdia o amor na morte, com a lentidão do avanço da doença. Porém, a peça não é uma ronda na doença, é um forte impacto ao sentimento.

Encenando o próprio sofrimento da mulher, Otávio vela os próprios sentidos e a razão de sua existência, sem exumar o carinho e a paixão que por anos dedicou à ela.

Uma cadeira de rodas movimenta a tristeza deste homem que esbranquiça a dor pelo verde musgo do cenário, ao fundo suas memórias são projetadas em imagens de dor, de solidão e de sexo. Todos estes sentidos um dia tornam-se capítulos da história de qualquer um de nós, haja doença, haja saúde. Córtex, para a ciência é a camada externa do cérebro. Para o teatro, hoje, são capítulos da história das cenas de Otávio Martins, pausadamente, amplificadas por um microfone da era de ouro das rádios, para centrar o roteiro num grito do âmago.

O medo, a morte e a solidão são feitos por um monstro, como aqueles de livros infantis. Ele observa, pendurado numa árvore, toda a diligência da vida daquele casal e debruça na cama de ferros brancos, erguida apenas para observar a passagem da vida que finda-se.
Otávio é um ator de imensas dimensões, não só por seu físico tamanho vertical, mas pelo horizontal dote artístico que torna nobre suas cenas. Ele movimenta o cenário e exprime todo o texto pelo físico de seu teatro e o tom grave de suas palavras.

Para a anatomia, o córtex é responsável pelo processamento neuronal do ser humano, estando na parte externa do cérebro. A linguagem e o pensamento são notáveis funções do córtex, deve-se a ele o mérito da evolução da espécie. Vale ressaltar que o aumento craniano dos seres aconteceram devido a necessidade de espaço do cérebro, visto que evoluía a linguagem, o pensamento, a percepção e os movimentos ganhavam novos ritmos. O córtex é composto, aproximadamente, por cem bilhões de neurônios. Falar, movimentar-se, observar, perceber, criar, processar informações e memorizar são funções do córtex, tornando-o nobre demais para ser abalado. Quando ocorre um abalo, sua estrutura desmancha suas funções e atrofia os sentidos que lhe são confiados ao humano.

O Acidente Vascular Cerebral (AVC), por exemplo, é um destes abalos que vão exterminando as funções do córtex, quando atingido. Quando o fluxo sanguíneo é interrompido ao cérebro, por alguma obstrução da artéria que o supre, designa-se um AVC isquêmico, ou quando por uma ruptura de algum vaso, um AVC hemorrágico.
O termo “córtex” surge para a medicina no século XVII, por antes significar apenas o revestimento externo das árvores, as cascas. Na literatura, o termo “córtex” acompanhava-se do gênero feminino, como linguagem poética tinha o significado de invólucro. Desta forma, iniciei o texto empregando Córtex, como a Córtex, por poetizar o roteiro de Keppler como envolvente, e sendo o Córtex, por sua característica psicológica altamente ligada ao sentido poético e anatômico, numa linha tênue e muito bela.

Com um texto tão bem encorpado como este, Nelson Baskerville laça sua direção, bem típica. O Auto-Tune de Nelson pacifica e desespera as atuações de Otávio, sim, são diversas atuações, em que alimentam Otávio num mesmo personagem adestrado de conflitantes sentimentos. Coisa de quem sabe fazer teatro!

Nelson vem puxando uma direção intocável. Aquela boneca branca tem vida pelas mãos de Otávio, ela ganha um sentido indispensável e os movimentos são operados por essas diversas atuações dele enquanto deteriora seu córtex no roteiro.

A iluminação corta o palco e retalha com arte a sobriedade do cenário e não transita em cores, deixando em um tom incrível o espetáculo. O desenho de luz torna-se parte do texto e é emblemático, sob a feitura de Wagner Freire. O homem do clima é o que dá as notas às cenas, isso significa o som que ambientaliza o roteiro, faz-se a regência sonora de Ricardo Severo na produção musical, despindo o cenário para penetrar o timbre dramático de Córtex.

Aquele cenário inspirando a saúde e o abandono tem a notável digital de Nelson Baskerville, ao lado de Amanda Vieira. A estrutura arquitetônica criada é um playground para Otávio evoluir e harmonizar-se como parte daquele meio. Ele veste as linhas de Marichilene Artisevskis, que apesar de tantas consoantes em seu nome, simplifica e ao mesmo tempo enobrece o figurino do personagem.
Ed Júlio é mais uma vez responsável por dar movimento a uma obra de peso. É ele quem ladrilha todo o Córtex, deixando perceptível o carinho e o suor empregado ao trabalho. A Baobá Produções Artísticas também produz o espetáculo, realizado pelo Banco do Brasil, que permite à bilheteria cobrar apenas R$ 6,00 nos ingressos, para assistir a um deslumbre.

Por vezes senti prender-se em meus olhos gotejos de lágrimas que cristalizavam todo sentimento jorrado por Otávio, que fala o oásis de Franz Keppler por meio deste texto, nos movimentos autênticos de Nelson Baskerville. Córtex é capaz de momentaneamente nos emudecer e voltar nosso olhar para o que há dentro de nós. Um amor e seu fim, tragicamente o fim carnal, apenas e dolorosamente, realizado com uma imensa beleza. Isso é Córtex, vestido por uma chuva de folhas secas que nos derrama num leito de histórias e de reflexões, cai em nós, como público, um estalo da realidade. Trate do amor, melhor do que trata-se da própria saúde! Talvez os dois estejam mais próximos do que a ciência e a arte entendam.

Córtex é indispensável para o teatro. Está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, até o dia 4 de novembro. Sextas às 20h. Sábado às 17h e 20h. Domingos às 19h. O valor é atrativo, como o roteiro. R$ 6,00 na bilheteria do CCBB. Foto: Otavio Dias.

Um comentário:

  1. Por meio de suas palavras, aumentou-me o desejo de assistir à esta peça!

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