Estreou
em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Brasil, o Córtex, ou a Córtex, enfim,
seja para a anatomia, para a literatura, ou para o teatro, este brilhante
espetáculo saiu do oásis mental de Franz Keppler, foi parar na bela estética
direção de Nelson Baskerville ao impagável ator Otávio Martins, produzido com
primor por Ed Júlio. O espetáculo acontece num abalo à mente humana, que
transpassa essa emoção para nós, o público.
Córtex
já tem um título rápido e funciona com o tom daqueles seriados cheios de
surpresas, porém com a deleitosa proximidade de acontecer no palco de um
teatro.
Franz
Keppler com sua mente trabalhada pelo vigor psicológico, rabiscou mais um de
seus intensos roteiros para adentrar à transição dos temas antropológicos para
a arte. Trocando balas entre o sentimento, o medo, a culpa e a consciência,
Córtex lava-se nas águas de um espetáculo solo, que depende constantemente do
olhar do público e do ardor e entrega de Otávio Martins.
Ao
chegarmos à sala do espetáculo, Otávio já está no palco, trajado por um
figurino em off-white, com um corte elegante, notado por uma gravata borboleta
e um paletó acentuando o saiote de tule que designa a projeção de sua mulher em
seus sentimentos. Otávio caminha pelo palco, travando folhas secas entre seus
pés descalços e o chão, atravessando este atrito ao som de pássaros e tropeços
do vento em folhagens, ainda sem texto na boca, mas com a fala permanente em
seus olhos e no fitar das mãos.
O
silêncio que paira o espetáculo tende a sublinhar as expressões clinicas de
Otávio que vão contornando nossas mentes e especulando o que está além do
palco.
A
mulher daquele homem que emite em suas palavras e em sua memória, é
representada por uma boneca branca de pano, sem olhos, nem boca, apenas com o
corpo, necessário para que projetemos nela sua representatividade. Com o avanço
de um acidente vascular, o cérebro vai ocupando-se de desfigurar o interior e o
exterior desta mulher, que espelha sua dor no sofrimento de seu companheiro. O
lindo jardim de sua casa agora é o palco de Córtex, num emaranhado
cinematográfico de folhagens derramadas umas sobre as outras e de galhos
escondendo uma história que ora engana, ora é fiel.
A
morte da mulher, fora ou não cometida pelo marido? A especulação de um
interrogatório ocupado pelo próprio ator o vincula ao sumiço da esposa, porém
em uma outra vértice altera o rumo da história. O sofrimento pelo
desaparecimento dela é o grande impacto em seu cotidiano, que já era sofrido
com a doença da mulher e parece acentuar com o sumiço de quem perdia o amor na
morte, com a lentidão do avanço da doença. Porém, a peça não é uma ronda na
doença, é um forte impacto ao sentimento.
Encenando
o próprio sofrimento da mulher, Otávio vela os próprios sentidos e a razão de
sua existência, sem exumar o carinho e a paixão que por anos dedicou à ela.
Uma
cadeira de rodas movimenta a tristeza deste homem que esbranquiça a dor pelo
verde musgo do cenário, ao fundo suas memórias são projetadas em imagens de
dor, de solidão e de sexo. Todos estes sentidos um dia tornam-se capítulos da
história de qualquer um de nós, haja doença, haja saúde. Córtex, para a ciência
é a camada externa do cérebro. Para o teatro, hoje, são capítulos da história
das cenas de Otávio Martins, pausadamente, amplificadas por um microfone da era
de ouro das rádios, para centrar o roteiro num grito do âmago.
O
medo, a morte e a solidão são feitos por um monstro, como aqueles de livros
infantis. Ele observa, pendurado numa árvore, toda a diligência da vida daquele
casal e debruça na cama de ferros brancos, erguida apenas para observar a
passagem da vida que finda-se.
Otávio
é um ator de imensas dimensões, não só por seu físico tamanho vertical, mas
pelo horizontal dote artístico que torna nobre suas cenas. Ele movimenta o
cenário e exprime todo o texto pelo físico de seu teatro e o tom grave de suas
palavras.
Para
a anatomia, o córtex é responsável pelo processamento neuronal do ser humano,
estando na parte externa do cérebro. A linguagem e o pensamento são notáveis
funções do córtex, deve-se a ele o mérito da evolução da espécie. Vale
ressaltar que o aumento craniano dos seres aconteceram devido a necessidade de
espaço do cérebro, visto que evoluía a linguagem, o pensamento, a percepção e
os movimentos ganhavam novos ritmos. O córtex é composto, aproximadamente, por
cem bilhões de neurônios. Falar, movimentar-se, observar, perceber, criar,
processar informações e memorizar são funções do córtex, tornando-o nobre demais
para ser abalado. Quando ocorre um abalo, sua estrutura desmancha suas funções
e atrofia os sentidos que lhe são confiados ao humano.
O
Acidente Vascular Cerebral (AVC), por exemplo, é um destes abalos que vão
exterminando as funções do córtex, quando atingido. Quando o fluxo sanguíneo é
interrompido ao cérebro, por alguma obstrução da artéria que o supre,
designa-se um AVC isquêmico, ou quando por uma ruptura de algum vaso, um AVC
hemorrágico.
O
termo “córtex” surge para a medicina no século XVII, por antes significar
apenas o revestimento externo das árvores, as cascas. Na literatura, o termo
“córtex” acompanhava-se do gênero feminino, como linguagem poética tinha o
significado de invólucro. Desta forma, iniciei o texto empregando Córtex, como
a Córtex, por poetizar o roteiro de Keppler como envolvente, e sendo o Córtex,
por sua característica psicológica altamente ligada ao sentido poético e
anatômico, numa linha tênue e muito bela.
Com
um texto tão bem encorpado como este, Nelson Baskerville laça sua direção, bem
típica. O Auto-Tune de Nelson pacifica e desespera as atuações de Otávio, sim,
são diversas atuações, em que alimentam Otávio num mesmo personagem adestrado
de conflitantes sentimentos. Coisa de quem sabe fazer teatro!
Nelson
vem puxando uma direção intocável. Aquela boneca branca tem vida pelas mãos de
Otávio, ela ganha um sentido indispensável e os movimentos são operados por
essas diversas atuações dele enquanto deteriora seu córtex no roteiro.
A
iluminação corta o palco e retalha com arte a sobriedade do cenário e não
transita em cores, deixando em um tom incrível o espetáculo. O desenho de luz
torna-se parte do texto e é emblemático, sob a feitura de Wagner Freire. O
homem do clima é o que dá as notas às cenas, isso significa o som que
ambientaliza o roteiro, faz-se a regência sonora de Ricardo Severo na produção
musical, despindo o cenário para penetrar o timbre dramático de Córtex.
Aquele
cenário inspirando a saúde e o abandono tem a notável digital de Nelson
Baskerville, ao lado de Amanda Vieira. A estrutura arquitetônica criada é um
playground para Otávio evoluir e harmonizar-se como parte daquele meio. Ele
veste as linhas de Marichilene Artisevskis, que apesar de tantas consoantes em
seu nome, simplifica e ao mesmo tempo enobrece o figurino do personagem.
Ed
Júlio é mais uma vez responsável por dar movimento a uma obra de peso. É ele
quem ladrilha todo o Córtex, deixando perceptível o carinho e o suor empregado
ao trabalho. A Baobá Produções Artísticas também produz o espetáculo, realizado
pelo Banco do Brasil, que permite à bilheteria cobrar apenas R$ 6,00 nos
ingressos, para assistir a um deslumbre.
Por
vezes senti prender-se em meus olhos gotejos de lágrimas que cristalizavam todo
sentimento jorrado por Otávio, que fala o oásis de Franz Keppler por meio deste
texto, nos movimentos autênticos de Nelson Baskerville. Córtex é capaz de
momentaneamente nos emudecer e voltar nosso olhar para o que há dentro de nós.
Um amor e seu fim, tragicamente o fim carnal, apenas e dolorosamente, realizado
com uma imensa beleza. Isso é Córtex, vestido por uma chuva de folhas secas que
nos derrama num leito de histórias e de reflexões, cai em nós, como público, um
estalo da realidade. Trate do amor, melhor do que trata-se da própria saúde!
Talvez os dois estejam mais próximos do que a ciência e a arte entendam.
Córtex
é indispensável para o teatro. Está em cartaz no Centro Cultural Banco do
Brasil, em São Paulo, até o dia 4 de novembro. Sextas às 20h. Sábado às 17h e
20h. Domingos às 19h. O valor é atrativo, como o roteiro. R$ 6,00 na bilheteria
do CCBB. Foto: Otavio Dias.
Por meio de suas palavras, aumentou-me o desejo de assistir à esta peça!
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