Demorei
tanto a escrever sobre esse espetáculo por necessitar de entender com mais
amplitude a grandeza de Equus para os dias de hoje. Sua última montagem não
está muito distante, fora em 2004, mas o texto é um encontro brutal com
qualquer época e torna-se sempre cabal para as relações destrutivas de uma
família psicologicamente desarmada. Equus, de Peter Shaffer, está em cartaz no
Teatro Folha, em São Paulo, criando um elo entre a suposta loucura de um
menino, na pele formidável de Leonardo Miggiorin e o psiquiatra bravamente
retocado por Elias Andreato. Tudo isso é desembrulhado na impecável direção de
Alexandre Reinecke.
Ao
terminar a peça eu perguntava-me como Leonardo Miggiorin deixaria toda a transe
de seu personagem, pois é algo que parece impossível. Leonardo parece vestir-se
da carne de Alan e imagino que enxugue suor de sangue para levar o auge
catatônico da mente do personagem para o palco. É simplesmente notável a
atuação do ator, abro o texto o aplaudindo pela fúria balanceada à nobre
delicadeza.
Nobreza
também reveste Elias Andreato, se perguntarmos em qualquer canto em que haja
arte ouviremos falar de Andreato como pilar genuíno do teatro. Este homem
dirigindo já é um monumento histórico, atuando é o encontro da perfeição com a
generosidade. Elias entrega-nos um teor linear de feição, sua estrutura física
mantem-se o tempo todo tal qual a de um psiquiatra consumido pela rotina de
seus clientes. Um hospital psiquiátrico é a forma mais exaurida de sustentar a
vida, para quem consome-se das histórias diversas de pacientes, um psiquiatra
caleja seu olhar. Elias Andreato, enquanto interpreta Dysart, é este olhar
drogado da vivência do cérebro alheio e dos berros de exaustão daquele cercado
fatídico da psiquiatria.
Quando
em uma das minhas críticas, acercada aos temas da psicologia, encontrei uma
frase, em minha própria mente, para exemplificar a mente de um paciente
psiquiátrico, pois nem todos podem ser chamados de loucos. Até porque a loucura
talvez não seja uma doença, talvez um estado parasitando o cérebro. Eu dizia na
crítica que, a loucura pode ser a morte da mente, porém jamais da criatividade.
As insanidades incitam ainda mais outros sentidos e tornam-se motivos de quem a
vive, nela encontram histórias e reescrevem a trajetória comum que seguiria um
humano. A fuga da realidade e dos fatores distantes do discernimento da
sociedade geraram o embrião do texto de Peter Shaffer, ao ouvir um amigo
contar-lhe sobre ter cegado cavalos. Antes de contar-lhe toda a história, na
Inglaterra, o amigo morreu. Restou a Peter encontrar os cacos em sua própria
mente para escrever uma intensa obra que tornaria um grito de alerta e um
observatório humano para o teatro.
O
espetáculo jorra o sofrimento do jovem Alan num texto repleto de encontros
mentais e de comportamentos transversos. Alan é filho de um comunista, que o
proíbe de ver televisão, e de uma professora com a religiosidade acentuada, que
assiduamente prega-lhe as discussões credulamente incontestáveis da Bíblia.
Alan
desperta um intenso apelo sexual por cavalos, em especial a apoteosar Equus, um
cavalo viril e de trotes firmes. No ofício de manter limpas as cocheiras e pentear
os cavalos, Alan aproxima-se ainda mais de sua excitação e executa um crime
instigado pela sensualidade de uma jovem, involuntariamente, porém com uma
insistência volúvel. A jovem tenta despertar a volúpia de Alan, que vê-se
cercado pelo comportamento do pai, que era um homem de integridade e fere sua
moralidade quando é pego pelo filho num cinema pornô. Alan denota a liberdade,
quando montado num cavalo e a exalta quando livra os cavalos das correntes e
chibatadas dos jóqueis, imagem relacionada, por ele, à paixão de Cristo.
Alan,
após cometer o crime de cegar seis cavalos, aparentemente sem um propósito, é
levado a um hospital psiquiátrico, onde encontraria a tenacidade do psiquiatra
Dysart. Este médico jamais poderia livrar Alan deste sofrimento, o tormento o
consumiria para toda a vida. A barbaridade de Alan, era o próprio Alan. Dysart
esmiúça, encontra em Alan um desafio e observa sua própria vida por indagações
do jovem. O crime é brutal, Alan não.
Os
entroncamentos familiares afloram sempre um personagem dentro da figura mais
frágil de um lar, isso é evidente nos reflexos da sociedade de todos os tempos.
As ansiedades, as nuances comportamentais e os devaneios sexuais de jovens
captam a desvairada educação retalhada de um pai e uma mãe. A repressão e a
imposição são gatilhos para o assassinato mental de um filho. As superproteções
e a ridicularização da infância, apelidando tudo que está ao alcance da criança
e tratando-a como um objeto frágil, despertam
a queda do processo de evolução mental.
A
mãe de Alan é interpretada por Patrícia Gaspar, numa atuação louvável, em que a
personagem despe-se da independência feminina e cabisbaixa o olhar para a
imposição de um homem, falsamente embalsamado por seu moralismo comunista. Sua
religiosidade é a cegueira da realidade e a presunção de uma família completa.
Jorge Emil, vive o pai de Alan, encabeçando um texto formidável e a busca pelas
fagulhas perdidas neste caso. Emil é dono de uma interpretação sóbria e
vigorosa. Mara Carvalho também está no elenco, imponente e brava. Léo
Steinbruch, Fernanda Cunha e Bruna Thedy enlaçam o grande elenco, que traz
ainda as firmes cavalgadas de Gustavo Malheiros. É ele quem interpreta o cavalo
Equus e ferozmente encontra os pés com a tacada no chão, acirrando o som da
patada do equino e seus espasmos musculares.
O
elenco não incha o palco, pelo contrário, adentra harmoniosamente à iluminação
de mestre assinada por Paulo Cesar Medeiros, cores quentes perfuram o cenário
de André Cortez que vai evoluindo ao palco arriscando ambientes que aguçam a
imaginação do público, permitindo-nos ampliar o campo de visão imaginária para
o propósito intelectual da direção de Alexandre Reinecke.
Reinecke
elabora um encontro de cenas no palco preservando a cena passada e a cena
futura, despejando nas arestas do cenário que torna frígido o palco, num
propósito sensacional de equilibrar o hospital a uma prisão mental, onde a
loucura acaba estacionada na morbidez de um local como este.
O
figurino de Renata Young permite tracejar por diversas épocas, reinando o
espetáculo por todo o tempo. É incansável o tema sexual, da repressão, da
imposição, da religiosidade e da moralidade, e os figurinos são importantes
contornos da personalidade de cada personagem. Logo, a despojada veste que Alan
cobre seu corpo é despida e o alto do espetáculo está nas expressões e no
discurso físico de Leonardo Miggiorin. Nu, ele rodeia os olhares do público
longe da vulgaridade e muito íntimo do descontrole mental e da exacerbação da
liberdade, seja mental, seja física.
Equus
é a tradução para o Latim, de cavalo. Equus é a batida da ferradura no magma do
texto de Peter. Dysart foi o psiquiatra interpretado por Paulo Autran. Alan foi
o jovem interpretado por Daniel Radcliffe, o ator que viveu Harry Potter. Sua
interpretação em Equus causou intenso burburinho aos ingleses, por ficar
totalmente nu ao palco. Miggiorin rege-se da mesma astúcia, sem atrair o
público por este motivo. Isso é a aproximação bela da psiquiatria com a arte.
Peter
coletou a história apenas no histórico do crime, sua fonte faleceu antes de
contar o que realmente ocorreu, porém cercou-se de fatos divulgados num jornal
para fermentar a história de Equus. Justamente essa palavra, Equus,
alucinadamente aproximando duas vogais, causava ainda mais apreço para Alan.
Num
aprofundamento à psicologia do roteiro é possível criar uma relação de Equus ao
caso do Pequeno Hans, caso clínico de Freud. A mãe de Hans já tinha sido
paciente de Freud e seu filho seria o próximo a encontrar-se às suas teorias.
Hans era o próprio Édipo, porém ainda amava seu pai, apesar de encontrar, desde
muito criança, na mãe sua fonte de sexualidade. A libido de Hans sempre fora
muito aguçado e ele exercia excessos de contatos com seu pênis. Numa repressão
da mãe, ao dizer para o garoto que o levaria para um médico decapitar o membro
caso tornasse a tocá-lo, causou em Hans um intenso transtorno psicológico. O
garoto via a irmã ao tomar banho e notava a ausência do mesmo aparelho sexual,
imaginava ela ter tido o pênis cortado, isso afligia-lhe ainda mais. O pai era
médico e andava sempre de branco, Hans tinha o pavor do branco, pois era a
veste dos médicos, os quais cortariam seu pênis caso o tocasse para
masturbar-se. A ameaça da mãe rondava o menino com frieza. Um cavalo branco
chegou a ser o espanto de Hans, pois imaginava sua mordida arrancar-lhe um
membro. Desta forma criava inúmeros encontros ao seu medo. Hans foi curado, por
intermédio de cartas correspondia-se com Freud, o notável pai da psicanálise.
A
história de Equus encontra-se em lapsos com a história de Hans, ao aproximar-se
da repressão vinda da mãe e o desespero que parte da figura paterna. Ainda,
caracteriza o cavalo como símbolo deste medo. Os medos, as fobias, são chaves
de fenda que desparafusam a normalidade cerebral.
Eu
não poderia deixar de falar da monumental trilha sonora dirigida por Tunica,
que vai lapidando as emoções do texto e batendo aos olhos do público cenas de
impactos imediatos.
Alan
chega muito próximo da esquizofrenia, embriaga-se de diversas peças da
psiquiatria e como uma peça de xadrez coloca livros e estudos da psicanálise em
xeque. Infortunado, desorganizado e catatônico, Alan vê-se incurável. A
criatividade de um homem insano adentra a sua inteligência e a torna
gigantesca. O psiquiatra encontra-se nas indagações de seu paciente e mostra
que o estudo da mente não é o propósito da cura, mas das organizações da vida.
Nem todos podemos violar o destino biológico para uma suposta normalidade. A
psicanálise, muitas vezes, é apenas um estudo e não uma cura. Elias Andreato
evidencia isso com maestria em seu olhar e a regressão histórica de seu
personagem, que observa-se, antes mesmo de conseguir curar seu paciente.
Um
cavalo, como um da raça Lipizzaner é o alvo coadjuvante de toda a história, que
brilha aos olhos de Alan a brancura de uma mente que viverá eternamente coberta
de nuances. Alexandre Reinecke traz uma lápide da história do teatro para a
atualidade, Equus sempre será uma atualidade.
Escrevi
demais, porém não seriam possíveis palavras sucintas para um trabalho de árduo
teor cênico.
A
produção de Isabel Gomez e Claudio Erlichman, realizado pela Jornaleiro estão
em São Paulo, no Teatro Folha, quartas e quintas, às 21h. O espetáculo ficará
em cartaz até o dia 27 de setembro, com os gentis valores entre R$ 10,00 e R$
20,00.
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