terça-feira, 11 de setembro de 2012

Equus é a incansável montagem da psiquiatria no teatro


Demorei tanto a escrever sobre esse espetáculo por necessitar de entender com mais amplitude a grandeza de Equus para os dias de hoje. Sua última montagem não está muito distante, fora em 2004, mas o texto é um encontro brutal com qualquer época e torna-se sempre cabal para as relações destrutivas de uma família psicologicamente desarmada. Equus, de Peter Shaffer, está em cartaz no Teatro Folha, em São Paulo, criando um elo entre a suposta loucura de um menino, na pele formidável de Leonardo Miggiorin e o psiquiatra bravamente retocado por Elias Andreato. Tudo isso é desembrulhado na impecável direção de Alexandre Reinecke.

Ao terminar a peça eu perguntava-me como Leonardo Miggiorin deixaria toda a transe de seu personagem, pois é algo que parece impossível. Leonardo parece vestir-se da carne de Alan e imagino que enxugue suor de sangue para levar o auge catatônico da mente do personagem para o palco. É simplesmente notável a atuação do ator, abro o texto o aplaudindo pela fúria balanceada à nobre delicadeza.

Nobreza também reveste Elias Andreato, se perguntarmos em qualquer canto em que haja arte ouviremos falar de Andreato como pilar genuíno do teatro. Este homem dirigindo já é um monumento histórico, atuando é o encontro da perfeição com a generosidade. Elias entrega-nos um teor linear de feição, sua estrutura física mantem-se o tempo todo tal qual a de um psiquiatra consumido pela rotina de seus clientes. Um hospital psiquiátrico é a forma mais exaurida de sustentar a vida, para quem consome-se das histórias diversas de pacientes, um psiquiatra caleja seu olhar. Elias Andreato, enquanto interpreta Dysart, é este olhar drogado da vivência do cérebro alheio e dos berros de exaustão daquele cercado fatídico da psiquiatria.
Quando em uma das minhas críticas, acercada aos temas da psicologia, encontrei uma frase, em minha própria mente, para exemplificar a mente de um paciente psiquiátrico, pois nem todos podem ser chamados de loucos. Até porque a loucura talvez não seja uma doença, talvez um estado parasitando o cérebro. Eu dizia na crítica que, a loucura pode ser a morte da mente, porém jamais da criatividade. As insanidades incitam ainda mais outros sentidos e tornam-se motivos de quem a vive, nela encontram histórias e reescrevem a trajetória comum que seguiria um humano. A fuga da realidade e dos fatores distantes do discernimento da sociedade geraram o embrião do texto de Peter Shaffer, ao ouvir um amigo contar-lhe sobre ter cegado cavalos. Antes de contar-lhe toda a história, na Inglaterra, o amigo morreu. Restou a Peter encontrar os cacos em sua própria mente para escrever uma intensa obra que tornaria um grito de alerta e um observatório humano para o teatro.

O espetáculo jorra o sofrimento do jovem Alan num texto repleto de encontros mentais e de comportamentos transversos. Alan é filho de um comunista, que o proíbe de ver televisão, e de uma professora com a religiosidade acentuada, que assiduamente prega-lhe as discussões credulamente incontestáveis da Bíblia.

Alan desperta um intenso apelo sexual por cavalos, em especial a apoteosar Equus, um cavalo viril e de trotes firmes. No ofício de manter limpas as cocheiras e pentear os cavalos, Alan aproxima-se ainda mais de sua excitação e executa um crime instigado pela sensualidade de uma jovem, involuntariamente, porém com uma insistência volúvel. A jovem tenta despertar a volúpia de Alan, que vê-se cercado pelo comportamento do pai, que era um homem de integridade e fere sua moralidade quando é pego pelo filho num cinema pornô. Alan denota a liberdade, quando montado num cavalo e a exalta quando livra os cavalos das correntes e chibatadas dos jóqueis, imagem relacionada, por ele, à paixão de Cristo.

Alan, após cometer o crime de cegar seis cavalos, aparentemente sem um propósito, é levado a um hospital psiquiátrico, onde encontraria a tenacidade do psiquiatra Dysart. Este médico jamais poderia livrar Alan deste sofrimento, o tormento o consumiria para toda a vida. A barbaridade de Alan, era o próprio Alan. Dysart esmiúça, encontra em Alan um desafio e observa sua própria vida por indagações do jovem. O crime é brutal, Alan não.
Os entroncamentos familiares afloram sempre um personagem dentro da figura mais frágil de um lar, isso é evidente nos reflexos da sociedade de todos os tempos. As ansiedades, as nuances comportamentais e os devaneios sexuais de jovens captam a desvairada educação retalhada de um pai e uma mãe. A repressão e a imposição são gatilhos para o assassinato mental de um filho. As superproteções e a ridicularização da infância, apelidando tudo que está ao alcance da criança e tratando-a como um objeto frágil, despertam  a queda do processo de evolução mental.

A mãe de Alan é interpretada por Patrícia Gaspar, numa atuação louvável, em que a personagem despe-se da independência feminina e cabisbaixa o olhar para a imposição de um homem, falsamente embalsamado por seu moralismo comunista. Sua religiosidade é a cegueira da realidade e a presunção de uma família completa. Jorge Emil, vive o pai de Alan, encabeçando um texto formidável e a busca pelas fagulhas perdidas neste caso. Emil é dono de uma interpretação sóbria e vigorosa. Mara Carvalho também está no elenco, imponente e brava. Léo Steinbruch, Fernanda Cunha e Bruna Thedy enlaçam o grande elenco, que traz ainda as firmes cavalgadas de Gustavo Malheiros. É ele quem interpreta o cavalo Equus e ferozmente encontra os pés com a tacada no chão, acirrando o som da patada do equino e seus espasmos musculares.

O elenco não incha o palco, pelo contrário, adentra harmoniosamente à iluminação de mestre assinada por Paulo Cesar Medeiros, cores quentes perfuram o cenário de André Cortez que vai evoluindo ao palco arriscando ambientes que aguçam a imaginação do público, permitindo-nos ampliar o campo de visão imaginária para o propósito intelectual da direção de Alexandre Reinecke.
Reinecke elabora um encontro de cenas no palco preservando a cena passada e a cena futura, despejando nas arestas do cenário que torna frígido o palco, num propósito sensacional de equilibrar o hospital a uma prisão mental, onde a loucura acaba estacionada na morbidez de um local como este.

O figurino de Renata Young permite tracejar por diversas épocas, reinando o espetáculo por todo o tempo. É incansável o tema sexual, da repressão, da imposição, da religiosidade e da moralidade, e os figurinos são importantes contornos da personalidade de cada personagem. Logo, a despojada veste que Alan cobre seu corpo é despida e o alto do espetáculo está nas expressões e no discurso físico de Leonardo Miggiorin. Nu, ele rodeia os olhares do público longe da vulgaridade e muito íntimo do descontrole mental e da exacerbação da liberdade, seja mental, seja física.

Equus é a tradução para o Latim, de cavalo. Equus é a batida da ferradura no magma do texto de Peter. Dysart foi o psiquiatra interpretado por Paulo Autran. Alan foi o jovem interpretado por Daniel Radcliffe, o ator que viveu Harry Potter. Sua interpretação em Equus causou intenso burburinho aos ingleses, por ficar totalmente nu ao palco. Miggiorin rege-se da mesma astúcia, sem atrair o público por este motivo. Isso é a aproximação bela da psiquiatria com a arte.
Peter coletou a história apenas no histórico do crime, sua fonte faleceu antes de contar o que realmente ocorreu, porém cercou-se de fatos divulgados num jornal para fermentar a história de Equus. Justamente essa palavra, Equus, alucinadamente aproximando duas vogais, causava ainda mais apreço para Alan.

Num aprofundamento à psicologia do roteiro é possível criar uma relação de Equus ao caso do Pequeno Hans, caso clínico de Freud. A mãe de Hans já tinha sido paciente de Freud e seu filho seria o próximo a encontrar-se às suas teorias. Hans era o próprio Édipo, porém ainda amava seu pai, apesar de encontrar, desde muito criança, na mãe sua fonte de sexualidade. A libido de Hans sempre fora muito aguçado e ele exercia excessos de contatos com seu pênis. Numa repressão da mãe, ao dizer para o garoto que o levaria para um médico decapitar o membro caso tornasse a tocá-lo, causou em Hans um intenso transtorno psicológico. O garoto via a irmã ao tomar banho e notava a ausência do mesmo aparelho sexual, imaginava ela ter tido o pênis cortado, isso afligia-lhe ainda mais. O pai era médico e andava sempre de branco, Hans tinha o pavor do branco, pois era a veste dos médicos, os quais cortariam seu pênis caso o tocasse para masturbar-se. A ameaça da mãe rondava o menino com frieza. Um cavalo branco chegou a ser o espanto de Hans, pois imaginava sua mordida arrancar-lhe um membro. Desta forma criava inúmeros encontros ao seu medo. Hans foi curado, por intermédio de cartas correspondia-se com Freud, o notável pai da psicanálise.

A história de Equus encontra-se em lapsos com a história de Hans, ao aproximar-se da repressão vinda da mãe e o desespero que parte da figura paterna. Ainda, caracteriza o cavalo como símbolo deste medo. Os medos, as fobias, são chaves de fenda que desparafusam a normalidade cerebral.

Eu não poderia deixar de falar da monumental trilha sonora dirigida por Tunica, que vai lapidando as emoções do texto e batendo aos olhos do público cenas de impactos imediatos.
Alan chega muito próximo da esquizofrenia, embriaga-se de diversas peças da psiquiatria e como uma peça de xadrez coloca livros e estudos da psicanálise em xeque. Infortunado, desorganizado e catatônico, Alan vê-se incurável. A criatividade de um homem insano adentra a sua inteligência e a torna gigantesca. O psiquiatra encontra-se nas indagações de seu paciente e mostra que o estudo da mente não é o propósito da cura, mas das organizações da vida. Nem todos podemos violar o destino biológico para uma suposta normalidade. A psicanálise, muitas vezes, é apenas um estudo e não uma cura. Elias Andreato evidencia isso com maestria em seu olhar e a regressão histórica de seu personagem, que observa-se, antes mesmo de conseguir curar seu paciente.

Um cavalo, como um da raça Lipizzaner é o alvo coadjuvante de toda a história, que brilha aos olhos de Alan a brancura de uma mente que viverá eternamente coberta de nuances. Alexandre Reinecke traz uma lápide da história do teatro para a atualidade, Equus sempre será uma atualidade.

Escrevi demais, porém não seriam possíveis palavras sucintas para um trabalho de árduo teor cênico.

A produção de Isabel Gomez e Claudio Erlichman, realizado pela Jornaleiro estão em São Paulo, no Teatro Folha, quartas e quintas, às 21h. O espetáculo ficará em cartaz até o dia 27 de setembro, com os gentis valores entre R$ 10,00 e R$ 20,00.

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