Seria
possível usar a expressão “um contemporâneo e inédito clássico cinematográfico
nos palcos do teatro”? Acredito eu, que para falar de “Atreva-se”, sim! A peça
de Maurício Guilherme, com o toque hilário da direção de Jô Soares, está em
cartaz no Teatro das Artes, em São Paulo, e traz uma comédia em preto e branco,
num “formato 3D” do cinema noir, para o teatro. No elenco a irreverência de
Marcos Veras, Júlia Rabello, Mariana Santos e Carol Martin.
Maurício
Guilherme tirou o texto da gaveta e revelou em sua película um emaranhado
formado por três histórias cômicas, que parecem ser o que é, mas não são aquilo
que parece ser. A história adapta-se a uma comédia noir, e torna-se rapidamente
adaptável a isso. Na década de 40, os filmes noir (film noir, do francês, filme preto) surgiram nas telas como um novo
modelo visual de exibição cinematográfica. E é neste molde que o espetáculo
“Atreva-se” encontra o seu roteiro, o deslumbrante figurino, os gestuais, o
cenário e o recorte das cenas.
Como
todo antigo cinema, o lanterninha passa pela plateia com sua luzinha acesa.
Mariana Santos deixa seus apagados e destemperados personagens da televisão
para um grandioso texto cômico, em molde de stand up comedy, vai encaixando
improvisos e apresentando figuras naturalmente irreverentes do público. Com um
alto teor de humor, Mariana desfila um texto bárbaro e sem exageros, apesar do
permitido e tolerável à comédia. Quando ela bate a claquete anunciando a
primeira cena da história, Marcos Veras e Júlia Rabello destacam-se para além
de um casal da vida real, mas um belo encontro teatral.
Com
os objetos da sala de um casarão todos encobertos por panos brancos, para
evitar o pó, e os quadros postos no chão, mostrando as marcas de anos
pendurados na parede, o corretor de imóveis, interpretado por Marcos Veras,
acentua a perfeição da casa, construída em frente a um parque municipal, com a
arquitetura preservada, e a póstuma história de outras duas famílias que ali
moraram em décadas passadas as de 1963, quando ocorre a cena. A casa é
apresentada a compradora interpretada por Júlia Rabello, que contracena com o
enriste dedo médio paralisado para o alto e o caolho do corretor.
Com
as tiradas de humor, o sobretudo vermelho com os cordões dourados arrobustando
os trajes da lanterninha, é anunciada a segunda cena, sob a batida da claquete.
Esta é uma regressão para a cena que acontece na década de 20. Grandes quadros
presos à parede, malas e baús Louis Vuitton e um imponente relógio imperando
entre as janelas de vidros curtos e alto cumprimento. Ao lado esquerdo o
telefone e a mesinha de madeira, combinando ao direito com uma bela cadeira e
um prateado castiçal ao lado do rádio, ao meio um sofá de centro assentando o
chapéu de Júlia e sua personagem, quando no alto acende o generoso lustre em
preto e cristais, que transpassa a fumaça do cigarro aceso. Uma governanta,
interpretada por Carol Martin, de longo vestido preto e cabelos gomalinados
para o lado, cruza a casa revirando a poeira e assustando o homem medroso
interpretado por Veras. O clima policial da história entre os irmãos que moram
na mansão, envolve a sinistra governanta e entona o clímax com o fresco toque
cômico que vai evoluindo junto à espetacular desenvoltura dos atores.
O autor
tira da manga mais uma história para envolver a comicidade policial e
entrelaçar as três cenas à fim de chegar a data da compra da mansão. Com uma
tímida reformulada na sala, e os quadros renovados, o tom preto e branco recebe
nova história na velha mansão. Duas primas aguardam com ânsia sincronizada a
visita do amigo, que gira para mover-se em sua perna mecânica sobreposta num
belo corte de smoking acalentando no peito um broche redondo do Presidente
Roosevelt, por quem saúda. Neste cenário as duas almejam o mesmo homem, e por
ele tramam um irreverente assassinato.
Na
batida da próxima claquete é trazida de volta a cena da compra do imóvel, em
que a personagem de Júlia Rabello aceita as chaves das mãos tratadas com luvas
de couro pretas do corretor vivido por Marcos Veras. Desde aí começam o
desenrolar das histórias e a descoberta da existência daqueles personagens, tão
incitados pela inquieta lanterninha.
Não
é difícil sentir-se como num cinema, sob a luz desfalecida em certas cenas e
robustas em outras. A galante iluminação de Maneco Quinderé surpreende pelo
efusivo trabalho retirado de seu vasto cartaz de espetáculos, e contrasta com o
garboso cenário de Chris Aizner, que troca venustos figurinos do venerado Fábio
Namatame. Para a trilha disso tudo, os sons modulados com abafamentos típicos,
para a perfeita sonoridade da época, é obra de Eduardo Queiroz.
Os
sobretons pretos, brancos e de prateados a cinzas caem aos veludosos e vistosos
corpos cênicos de Júlia Rabello e Carol Martin, que emplacam mulheres de
olhares férteis, capazes de brotar várias e gigantes personagens, encontradas
em atrizes de semblantes e timbres tecnicamente cinematográficos, adentrados ao
teatro. Mariana Santos traz em seus cabelos loiros, caídos pelo casaco
vermelho, a única cor escapada do noir para a plateia, com a inteligência
cômica acrescida por Jô Soares numa personagem que tornou-se de extrema
importância para a acentuação do humor no espetáculo. Enfim, Marcos Veras é a
caixinha de surpresa, que salta um personagem melhor do que o outro, carimbados
pela astuta personalidade teatral do ator e sua digital evidentemente impressa
a cada característica dos personagens. Este foi escolhido a dedo, como todos os
outros, mas como o único homem sobre o palco, destaca a impostação e relevância
de sua presença em cada cena. Ouso em dizer que ele é o Charlie Chaplin dos
dias de hoje, de cara e gestos.
O
texto de Maurício Guilherme reflete o genial suspense empoeirado de seus
arquivos dos anos 90, para a magnitude de Luciana Sendyk, que colaborou com o
tratamento e lapidação do roteiro. Está nos olhos de qualquer bom entendedor o
primor do espetáculo e sua característica captada por ninguém melhor do que Jô
Soares, amante das duas artes cênicas, do teatro e do cinema, que coloca um esquete
de noir para um palco teatral. Isso é no mínimo sensacional.
O
espetáculo é o brilho inspirador de clássicos do cinema como “Expresso para
Berlin” e “Frankenstein”, além de outros, por suas paradas pitorescas e os
clímax, além da incompatibilidade de fatos e confusões atreladas ao suspense,
que logo tornam-se compatíveis, quando desenrolados. Como já dito, o cinema 3D
sempre existiu, e ele chama-se teatro, eis em “Atreva-se” a personificação
disto.
Algumas
fotografias, de Priscila Prade, feitas em quadro e moldura, como as que ornam o
cenário de “Atreva-se”, estão em exposição no bistrô “Paris 6”, com fotos do
espetáculo. É possível fazer xixi sendo observado pelo único olho aberto do
personagem de Marcos Veras. Ainda não sei qual é a sensação, mas certamente
vale a pena compartilhar da urinada.
A
produção é de Rodrigo Velloni, com realização da Velloni Produções
Artísticas. A peça está em cartaz no
Teatro das Artes, no Shopping Eldorado, em São Paulo. Quintas e sábados às
21h30. Domingo às 20h. Os ingressos custam entre R$ 50,0 e R$ 60,0. A temporada
esta prevista até o dia 2 de setembro na capital. Recomendo assistir, e depois
dá uma passada no Paris 6, além das fotos, o cardápio é ótimo.
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