segunda-feira, 23 de julho de 2012

Rita Lee é pra se ouvir de joelhos e com “reza” boa


Quando eu conheci a Rita passei a compreender de onde brotava o rock que tanto falavam no Brasil. Não há nada mais gostoso que ouvir a exploração dos instrumentos e de uma voz que recusa playback, após a Jovem Guarda, que vestiu o País de jaqueta preta. Depois que o Brasil conheceu a trupe da Jovem Guarda, eis que surge a mulher que deixaria de joelhos aos seus cabelos acobreados. Pra rezar? Agora sim! Mas ela nunca negou seu teor revolucionário. Quando eu ouvi as guitarras de Roberto de Carvalho e de sua prole Beto Lee, e mais recente e com audácia as introduções do piano de Danilo Santana, eu conheci uma das minhas predileções, o rock, mas o da Rita Lee. Agora com “Reza”, seu mais novo e impecável álbum, cheio de balangandãs e balacobacos.

Ouvir Rita Lee é um pouco além de estourar uma trincheira, ultrapassar uma geração, retroceder e interceder, ir além de qualquer tempo, reler e queimar seus próprios contos e ver chamuscar arte. A Rita é um vulcão! Prepare-se para aprender novos adjetivos, porque eu vou precisar de muitos daqui pra frente!

“Por causa de um baseadinho?”, foi a frase que trouxe de volta as indagações de Rita Lee para a história. Ela chegou a ser convocada para depor numa delegacia, em seu show de despedida dos palcos em Sergipe, após incomodar-se com a presença de policiais revistando fãs em seu show. E foi, sem arrependimento. Não precisamos levantar bandeira alguma, mas seu verbo é transitivo e eu assino embaixo.

O dia em que nos encontramos eu tinha pendurado no ombro uma câmera fotográfica. Mania de jornalista em andar com o olho eletrônico sempre ao alcance, espreitando o que pode acontecer no caminho. Dei-lhe um abraço, típico de quem encontra a Rita, e seu frenético batom avermelhado, que contrasta com os cabelos, fitou meu rosto e alimentou seu sorriso. A Rita colocou as mãos na minha câmera e disse: “Isso aqui não é feito pra fotografar? ‘Tá’ esperando o que pra tirar nossa foto?”. Isso é artista que se respeite? É! Tiramos a foto e o carro chegou. Foi uma das últimas vezes que nos vimos. Estou com saudades. O palco, mais ainda!
No episódio em que Rita foi autuada pela polícia, marcara, tipicamente, sua despedida aos palcos. Os devera roqueiros derramavam lágrimas e já inspiravam as saudades. Mas, enquanto fechava sua vida dos palcos, Rita e Roberto preparavam um álbum de cetim. “Reza” chegou para coroar os cabelos de fogo e nos colocar a ouvi-la de pernas pro ar. Rita, então, despedia-se dos palcos.

“Reza” tem uma coisa que talvez um filho, ludicamente falando, de Dorival Caymmi e Janis Joplin representaria em pessoa. O batuquinho do baticum de uma macumbinha, com a magnífica versão de rock dedilhada com gozo nas guitarras e nos graves do baixo mestre. Tantas palavras, algumas que vou inventando, outras que já ouvi entre a Bahia, São Paulo, Rio e Londres, mas são cabais para falar de “Reza”. Os trabalhos abrem-se com a primeira faixa chamada “Pistis Sophia”, e como o Mar de Sophia e o Mundo de Sophia, clássicos, desvelam a religiosidade de Rita. É um auto-retrato de fé, num ruído gostoso. Consigo ver Rita beijando santinhos, inventando suas próprias orações e pouco se lixando pra opinião de sua versão ateia de se viver. São sons, sem predicados, com a função de introduzir o álbum, jogar os búzios na mesa, limpar o congá, jogar arruda na cabeça, dar um trago no charuto, jogar o uísque pra trás e lavar as mãos com água de cheiro. Sem esquecer dos três nós na fitinha do Bonfim. “Reza” começa assim, trazendo em seguida a música que intitula o álbum.

Rita Lee Jones, já foi batizada com nome de artista, nasceu no último dia do ano, na capital paulista, e foi descrita por Caetano Veloso como “a mais completa tradução” de São Paulo, na canção “Sampa”. No Brasil, é a cantora que mais vendeu álbuns na história, com mais de 65 milhões de cópias.

Rita integrou os Mutantes, na década de 60 e meados de 70, onde serviu letras até hoje reconhecidas em sua voz com uma lembrança enxuta dos fãs. Sempre com o dom de improvisar instrumentos, chegou a utilizar uma bomba de dedetização para sonorizar “Caminhante Noturno”. Quando deixou o grupo, ao fim de seu casamento com o outro integrante, Arnaldo Baptista, juntou-se com a amiga Lúcia Turnbull para lançar a dupla As Cilibrinas do Éden. Com o término da dupla, Rita ingressou no Tutti-Frutt, e em seguida fez carreira solo, quando, entre outras, lançou “Ovelha Negra”, mostrando que compositora era. Em 1976 conheceu Roberto de Carvalho, com quem teve três filhos e laçou uma estupenda parceria musical. Um dos filhos é Beto Lee, guitarrista de dedos afiados, que deu-lhes de presente a neta Izabella, pondo outra personagem factual da família Lee para correr pelos corredores do colorido lar de Rita e Roberto.
Na época em que o rock ganhava cores tropicalienses havia uma certa divisão na música. A ditadura rolava solto pelas ruas e a censura pilhava os palcos. Homens sem escrúpulos algum tomavam conta do que hoje chamam de política. Elis Regina passava pelos corredores de festivais sem levantar assunto com Rita Lee, mesmo a encontrando pelo caminho. E quem nunca admirou a jazzística voz de Elis? Rita, mesmo a adorando, ficava na dela.

Em 1976, Rita é presa por porte de droga. Não que a tenha usado, mas amigos frequentavam sua casa e largavam fagulhas pelas peças. Grávida ouvia suas músicas em mente por detrás de ferros quentes da prisão. A única a visitar foi Elis, e essa foi tamanha surpresa. Como grandes amigas, Elis fazia rebuliços na prisão, e quando Rita saiu a colocou pra cima, convidando para espetáculos e musicais. A chamava de Maria Rita, e anos depois, ao nascer sua única filha, a batizou com o apelidinho que nomeava a amiga do rock.

Em 1996 Rita Lee, enquanto brincava com seu cachorro, caiu da sacada de sua casa e triturou o côndilo maxilar. O episódio quase a afastou definitivamente da música.

Não posso deixar de relembrar um encontro histórico. Rita em casa, toca o telefone e o pai da bossa apresenta-se cantando “Mania de Você”, ainda ao telefone. Rita cai em si, e comprova a veracidade da sorrateira voz que sussurra sua composição. João Gilberto, ao outro lado da linha, a convidava para gravar, em 1982, um especial seu na TV Globo. Enviou para ela uma fita com a canção “Jou Jou Balangandãs”, e continuava a telefonar para explicar tudo sobre a música. Além de tudo disse o vestido que ela usaria. A apresentação aconteceu, sem ensaio. Foi uma das únicas vezes que vi João Gilberto cantar de pé.

Rita Lee mandou para as agulhas das vitrolas inúmeros Lps. Eu ainda admiro muito aquela capa azulada em tons de água, com os traços tropicais, do álbum que trazia seu abraço com Roberto de Carvalho. Tenho ele comigo. O som do disco é mais íntimo, aquele ruído da agulha beijando o acetato constantemente é como ouvir os pássaros que solfejam na penúltima faixa de “Reza”, que também ganhou bela versão em disco.
Essa penúltima faixa tem um nome bem complicadinho de pronunciar, mas fica fácil na segunda estrofe. As músicas de versos e cheias de transições instrumentais e com bárbaros solos gravam rápido na cabeça da gente. Duas vezes ouvindo o CD eu já estava repetindo “As Loucas” e “Tô um Lixo”, ambas com letras rápidas e de um entendimento direto. Voltando à penúltima faixa, “Bamboogiewoogie”, tem um cangerê com cordas e palmadas. É uma novidade, como foi “Bat Macumba”, na Tropicália.

“Reza” tem o calibre da Biscoito Fino, que é a casa, em plena sala de estar dos bons amigos. Dos bon vivants, da boa música.

No último show em que fui havia uma banda, vou poupar os palavrões, que aliás, já evitei durante todo o texto, que era “boldo na veia”. Danilo Santana arrebentando nos teclados, como se fosse a ópera do rock. As cordas regidas por Beto Lee e Roberto de Carvalho, além do baixo de Brenno Di Napoli. Os vocais de apoio de Rita Kfouri e Debora Reis e as pancadas na bateria de Edu Salvitti. Voltei pra casa neste dia sem querer ouvir mais nada durante uma semana. Eles todos são muito bons.
Não vou ficar falando das outras músicas, apesar de não ter falado nada sobre “Reza”, a segunda faixa do álbum. Cada um tem uma reza, a da Rita é cheia de mandingas. Imagine um patuá cantado. Isso é “Reza”, a canção guardada que foi jogada a rosa dos ventos desenhada na capa do CD. Mas, não é uma rosa dos ventos. São as cópias do olhar de Rita banhado pelos fios vermelhos de suas madeixas. Ouçam o disco inteiro e verá que cada um tem algo a declarar. Ou cale-se, vá pintar. Ela faz assim! É interessantíssimo.

Rita Lee deixou no ar sua volta aos palcos, após declarar que não voltaria mais a fazer shows. Eu estou apostando que volta. Sua intimidade é o palco, é o som, é estar entre suas mais chegadas guitarras e de apito na boca.

Rita, volta que a gente tá esperando você!

4 comentários:

  1. Rita Lee é foda !!! Ela é maravilhosa !!!(by Veet Prayas)

    ResponderExcluir
  2. Que eu saiba a rita nasceu na Bahia e a bomba de flitz foi tocada pelo Bororó em "Le Premier Bonheur du Jour"...

    ResponderExcluir
  3. Belo texto rapaz, contente em ler as gentilezas escritas aqui. Rita Lee é a maior cantora e compositora desse país, merece cada palavra. Reza é um cd perfeito, divino, capaz de verdadeiros milagres em ouvidos e alma, um abraço, fernanda.

    ResponderExcluir