Está
em cartaz no teatro União Cultural, em São Paulo, a comédia que discute um dos
mais recorridos temas atuais. Recorridos no sentido de, salas lotadas em
clínicas de cirurgia plástica. A explosão de cirurgiões plásticos, quase que
mágicos, nas mídias, deu origem ao texto, cheio de boas sacadas, de Gisela
Marques, com a leitura e a dinâmica direção de Ricardo Severo, aos holofotes da
produção de Ed Júlio, “O Incrível Dr. Green”, enche o palco de Botox, peitos,
glúteos, beleza e pavor.
Com
as luzes apontando ao cenário de Laura Carone, muito bem ambientado e como
recortado de uma revista, daquelas que retratam os modelos das clínicas
cirúrgicas que enchem suas receitas pelas tarjas bonificadas dos dourados e
platinados cartões de crédito, os atores começam a desfilar seus pomposos e
impecavelmente alfinetados figurinos, da obra de Elena Toscano. Gilda,
personagem de Ana Andreatta, é a funcionária que serve o café e indica a sala a
ser tratado o paciente. Ana executa quase que um teatro físico, com um frescor
delicioso e de deleite aos dentes dispostos à sorrir. Não há quem não encontre
um riso frouxo pela plateia, ao entrar Gilda, consumidora assídua das sementes
de Jussara, que prometem desenhar belas silhuetas nas cinturas da mulherada.
Quem
vive Jussara é nada mais, nada menos do que Nany People, nem consigo imaginar
outra pessoa executando a personagem. Nany vestiu Jussara de um saco de risadas
e embolsou qualquer erro cênico pra si só. Não há uma entrada sua no palco que
não desvele uma gargalhada daquelas que puxam inúmeras outras. Jussara vende
sementes, e faz isso na recepção da clínica Afrodite-se. Adélia, interpretada
pelo refinamento de Gabriela Alves, é uma das despreocupadas com qualquer coisa
que gire em torno de si, a não ser a busca por eliminar a gordura que não
existe. Ela consome esporadicamente as sementes de Jussara, o que não a faz ser
maior consumidora do que Gilda, que ganha qualquer cena em que estiver presente
por sua mudez cheia de movimentos irreverentes, causados pelo excesso do uso
das sementes.
Adélia
é uma mulher elegante, de um andar cheio de ar no peito e com a ponta do nariz
apontada para o defeito visível apenas aos seus olhos. Ela é o arquétipo da
mulher atual, no caso de muitas, que preocupam-se ao olhar da outra mulher
sobre o que veste e aquilo que está por debaixo da veste. No sofá da clínica
também aquecem-se as nádegas recauchutadas de Márcia Castanho, vivida por Nyrce
Levin. Márcia é uma atriz, modelo e cantora da década de 80, época em que
ficaram todas as partes reais de seu corpo, na atualidade da peça, sua soberba
está por cima de todas as obras barrocas e cubistas do Dr. Green, que a remoldam
sob os ossos falidos desta rica em decadência.
Amanda
Costa é o brinde do humor, interpretando Karina, uma jovem que foge ao padrão
atual de recauchutagem e da beleza natural, assombra a imaginação dessas
mulheres que aguardam ser atendidas por Dr. Green. Karina tem defeitos
visíveis, mesmo por cima da roupa, onde lhe faltam seios e sobra quadril,
desmanchando o imenso nariz que tira o ar de qualquer um. Todas elas buscam
algo em comum, a beleza que vem e vai, tal qual o fole de uma sanfona.
Alguém
teria que organizar o falatório de quatro mulheres que escondem suas
personalidades verdadeiras e as deixam escapar pelo furo que as agulhas
cirúrgicas cometem, a não ser a inexistência de som na voz de Gilda, a copeira
que vive como um passarinho envolto de sementes submersas em serotonina, mas
que tem que ser imediatamente polida por seus exacerbados e cômicos movimentos,
impulsionados pela substância que a toma. Roberto Rocha, e suas calças
apertadas, cintilam um homem conhecedor da sensibilidade e da robustez de uma
mulher, no papel de Geraldinho, ao qual o diminutivo denota com suavidade sua
simpatia. Geraldinho é o recepcionista que não perde nenhum programa de Dr.
Green, que faz sucesso na televisão. Retrato fiel da realidade.
Neste
brinde do humor, encontra-se o gás na pele de Nany People e sua esfuziante forma
de fazer humor. Ela entorna o ritmo do espetáculo e traz nas pregas de suas
coloridas roupas um elenco disposto a descolar o Botox de quem assiste à
oficina mecânica humana.
Logo
no início, quando a ribalta ainda nem esclarece o que há por vir, as mulheres
entram mascaradas por uma pele que não lhes pertence, pela forma imaterial que
as compõe. Numa dança violada nos escombros de peitos, nádegas e barrigas,
Ricardo Severo, o grande diretor, que pincela por debaixo de seu
cinematográfico bigode uma ninhada de talentos acertados por seu bisturi, traz
uma referência ao roteiro de Almodóvar, do filme A Pele que Habito, onde
tenta-se reconstruir o corpo de uma mulher que se foi, e isso é genial.
Gabriela
Alves é o gole do brinde desta comédia, que desce deslumbrante ao brilho de sua
personagem, um brilho maquiado, mas um brilho. Vejo um pouco de exagero na
impostação de seu tom, mas acredito que haja muita mulher tentando
equilibrar-se em saltos como os de sua personagem Adélia. Mas, é lindo ver
Gabriela desfilar no palco. Amanda Costa conquista por sua ingenuidade inicial,
abordando o texto com um humor simples e o despejando a um final triunfal.
Márcia Castanho, no olhar esnobe de Nyrce Levin, dotada de um papel fenomenal e
digno da arrogância e prepotência das desvalidas da verdadeira finesse , regala
o texto com rigor e o interpreta com ar de dama das palavras e dos movimentos,
esse é o cálice do brinde, é a taça, que trinca quando ela canta, numa voz
despreparada, mas que dá para encarnar ao vencimento da carreira de sua
personagem.
O
dueto cênico de Roberto Rocha e sua incumbência de mediar o falatório desse
amontoado de quebra-cabeças corpóreos, com nome de mulheres, ao lado de Ana Andreatto, desenham a
caricatura básica do humor, que é fazer rir. Apesar de faltar a Roberto um
trago de naturalidade, de desprender-se do papel e levar aos traços de seus
olhares um pouco mais de leveza ao interpretar.
A
iluminação pontual de Wagner Freire lambuza o texto de Gisela Marques com
maestria. Gisela pontua a importância da discussão de temas contemporâneos e
acaba traçando uma moral importante em seu roteiro. Entrega às mãos de Severo
toda sua grandeza para alimentar as batutas de Ed Júlio em um conjunto
produtivo impecável. Acredito que o som poderia estar um pouco mais alto, os
atores cantam, músicas muito bacanas, mas o áudio do acompanhamento está mal
distribuído na acústica.
O
excesso das cirurgias plásticas, de fato, tem dizimado algumas famílias,
tornando seus personagens factuais irreconhecíveis. Ontem via-se uma avó, hoje
nota-se o autorretrato do Frankenstein. Onde cabiam lábios, arreganham-se as
figuras daqueles hot-dogs americanos que sobram salsichas pelas bordas. Os
olhos, que outrora piscavam, aprontam-se para a diligência quase fechados, onde
os pés de galinha viraram canja. Essa é a exacerbação do uso de bisturi e dos
medicamentos para o caminho da então e prometida beleza. Em contrapartida há
cortes que destacam a beleza, desprovidos de exageros, mentiras e ficam orçados
num justo investimento. Seja à prazo, à perder de vista, por nota promissória,
em compra coletiva ou no cartão as clínicas pipocam os edifícios e os
corredores onde cantarolavam os açougueiros e as consultoras daqueles pavorosos
cremes e perfumes.
A
beleza tem um preço, por vezes pago pelo tenebroso resultado final, ou, quem
sabe, um belo acerto.
“O
Incrível Dr. Green” fica na imaginação do público, seja ele aprisionado na
estufa dos silicones de seu tórax, e na torneada panturrilha que lhe mantém em
pé nas horas de cirurgia, ou na estranheza de um homem que é belo para quem é
feio. O espetáculo está em cartaz no Teatro União Cultural, em São Paulo, até o
mês de novembro. Os ingressos custam entre R$ 30,00 e R$ 40,00. Sextas às
21h30, aos sábados às 21h e aos domingos às 19h30. Tomo parte de Ricardo Severo
e companhia, além da fabulosa Baobá Produções Artísticas, para convidar-lhes ao
espetáculo. Sem medo de identificarem-se!