terça-feira, 14 de agosto de 2012

Bibi Ferreira, o maior concerto da vida artística de volta a SP


Bibi traz sempre um frio na barriga em qualquer espectador que a espera entrar ao palco, assim as crinas em cerdas dos violinos eram espetadas pelos arcos dos violinistas, das teclas do piano saiam poesias, dos sopros a vida, a bateria equilibrando os graves e os agudos e as cordas acompanhando a regência firme do maestro. Um brilho apontando às cortinas pretas e aos olhos do público, enquanto uma fagulha de voz caia ao palco, vestindo um azul do céu ao anoitecer, Bibi Ferreira pisava os saltos na madeira para sentirmos seu perfume musical. Ela está em São Paulo com a mais longa vida artística e sem dúvidas, a mais bela.

Abigail, doce Bibi! Uma luz e o desenho em cores flechava o palco pelo olhar técnico e sensível de Paulo César Medeiros, enquanto a cascata de músicos recitava seus instrumentos, o maestro Flávio Mendes erguia o indicador para o lado esquerdo, e ao centro uma orgia vocal lembrava a Bibi de todos os tempos. Ela é a mesma, a eterna filha de Procópio e Aída, é a meninota que acordou no palco aos 24 dias de vida, e a jovem senhora que não se cansa, e nem deve se cansar de descortinar os palcos.

Irreverente, linda e imponente! Simples, quando deixa subir às cordas vocais a letra de Noel no “Brinde a Traviata”, de Verdi. Ela é, com todo respeito, uma maluca com toda sanidade.

Ninguém seria capaz de fazer o que Bibi faz na posse de um palco. Ninguém, com toda sua preguiça e seu genuíno e sublime dote artístico, faria da ópera uma canção brasileira para o samba. Bibi faz renascer o espírito das canções que pairavam sua juventude, nos acordes mais elegantes da música clássica. Faz a gente rir, lacrimejar e bailar com a cabeça.

Ela não para de trabalhar, de divertir-se levando ao mundo toda sua capacidade artística. Agora está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo, pela direção nobre de João Falcão, por quem estreito tremenda admiração. “Bibi. Histórias e Canções” é o encaixe que faltava no colar de pérolas trazidas do fundo do mar. Enquanto reescreve sua própria biografia no palco, com delicadeza e muito bom humor, Bibi canta e encanta.

Abigail Izquierdo Ferreira, vulgo, Bibi Ferreira, é a maior expressão artística em movimento atualmente, e desde 1922, quando veio ao mundo pelo colo carioca de Procópio Ferreira, ao ventre ilustre de Aída Izquierdo, a mãe que lhe ordenaria os passos por anos e anos. Na companhia de teatro de Abigail Maia, Procópio levou Bibi, aos 24 dias de vida para acompanhar seu trabalho, quando ela nem sequer poderia imaginar o que seria. Na falta de uma boneca, no espetáculo “Manhãs de Sol”, Abigail pegou ao colo quem seria batizada com seu mesmo nome e levou-a para o palco de fronte a sua primeira plateia.
Falava espanhol quando aprendeu a declamar as primeiras palavras, entrou para o Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando ainda grafava-se Theatro, com “H”. Foi rejeitada pelo Colégio Sion, nas Laranjeiras, por ser filha de artistas. O pai foi um grande ator, um dos maiores. A mãe, bailarina. Em 1941 estreou profissionalmente nos palcos, em “La locandiera”, quando interpretou Mirandolina. Três anos depois fundou sua própria companhia de teatro, que contou com Cacilda Becker, Maria Della Costa e a formidável Henriette Morineau. Na época, Bibi disputava os textos e os direitos com Eva Todor, as duas engrenariam uma longa estrada pelo teatro. Bibi chegou a fazer 8 peças num só ano, quem faz isso hoje?

Na década de 50, Bibi trouxe dez dançarinas americanas para o Brasil, além de mais 20 profissionais contratados e colocou em cartaz o espetáculo “Escândalos 1950”. Alguns dias após a estreia, no Rio de Janeiro, o Teatro Carlos Gomes, onde estava em cartaz, incendiou e o fogo consumiu todos os cenários e figurinos da companhia de Bibi. A simplicidade de sua origem permitiu-a receber do então dono do Copacabana Palace todos os figurinos que restaram do Cassino, que fora fechado junto a outros pelo Brasil, por decreto do Presidente Dutra. Suntuosos figurinos de revista foram para as mãos de Bibi, que recuperou-se após alguns anos do episódio que tentaria inibir seu sucesso.

Bibi foi fazer sucesso em Portugal, teve declives, mas em 1960 mostrou-se a eterna princesa do teatro, quando interpretou o musical “My Fair Lady”, ao lado de Paulo Autran. Na mesma época foi apresentadora na TV Excelsior.

Bibi trouxe para o Brasil a forma leal de interpretar musicais e exaltou ao mundo sua peculiaridade visceral de atriz e cantora, coisa que ela nega, mas ela é cantora sim e das melhores. Chega a ser um ouro, onde não mede-se o quilate, porque é raro demais pra que tenha-se o verdadeiro conhecimento. Em 1970, Bibi dirigiu “Brasileiro: Profissão Esperança”, de Paulo Pontes, com Maria Bethânia e Ítalo Rossi, que em seguida foi remontada com Clara Nunes e depois interpretada pela própria Bibi. Atuou em “O Homem de la Mancha”, também com Paulo Autran, e impôs com austeridade e doçura “A Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes.

Bibi um dia será filme, livro, peça de teatro, busto, nome disso e daquilo. Ela é a história viva do mundo artístico. Bibi conheceu Noel Rosa, no filme “Cidade Mulher”, de Humberto Mauro, e ele ensinou-a como cadenciar um samba em sua voz. Muito nova já era capaz de ganhar o mundo com sua voz e cena. Bibi ama a palavra, e isso é notável.

Com um sorriso especial, Bibi desponta a felicidade de cravar os pés no palco e ainda ondular o corpo no formato do tom da canção. Quando era nova, mais do que ainda é, Bibi presenciava as reuniões do tio, que trabalhava na embaixada argentina e trazia para casa os grandes cantores de tango da época, além disso, ouvia os discos que Procópio colocava para tocar em casa. Em cima das óperas recontava as composições brasileiras, e lembra tudo isso como uma menina no palco.

Bibi resgata a musicalidade que perdeu-se pelo tempo, faz rastejar pelo teatro uma voz que vai do grave ao agudo com uma facilidade incrível, e orna ao palco com uma beleza estonteante. O teatro seria um simples gênero sem Bibi Ferreira.

Bibi viaja pelos musicais, pelos fados, pelas óperas, pelos sambas e por sua própria vida. Um álbum de fotografias diluído em palavras. Ouvi tudo com os olhos cobertos de lágrimas e a boca escancarando sorriso.

No “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini, Bibi encaixou diversos sambas, de Lamartine Babo, Ary Barroso, Luís Iglesias, Braguinha, Davi Nasser e deita a canção no “Carinhoso”, de Pixinguinha, sobe o tom da Orquestra, e o italiano exalta o verdadeiro Fígaro.

Quando pensei que um veludo acariciava os meus ouvidos, era Bibi alongando a voz com um sorriso incompatível com qualquer soprano, e que só completa a ela. Samba de breque, a história do corisco Lampião, nuns acordes arrastados e impecáveis e a Marcha dos Soldados, de Fausto de Gounod, com a poesia de Caymmi, em “Maracangalha”. Bibi é uma “repoeta”, que reescreve a poesia no deslumbre de seu timbre. Bibi é o repique de uma Orquestra, e o violino de uma bateria. Apenas ela pode ser o inverso do original, pois o torna belo.

Não poderia faltar o francês mais bem falado que há neste solo, Bibi solta a voz para as canções de Edith Piaf, e traz a rosa espetando sua voz que declara a evidência de seu sucesso. Audaciosa, ela já foi à Portugal cantar Amália, à Argentina cantar Tango e à França, Piaf.

Ricco Antony traz uma produção glamorosa, e com cheiro de média e pão com manteiga para servir à Noel. Flávio Mendes permite passar pelos olhos de João Falcão o brilho do sax para a tampa do piano, que verte à Bibi o brilho mais lindo da noite, de todas as noites que o teatro ainda há de viver.
Nilson Raman, com uma saudável voz, enlaça Bibi num abraço e tasca-lhe um lindo beijo que toca os lábios, que outrora cantaram a embalada canção que animou o repertório de Piaf, “À quoi ça sert l’amour”, fazendo a altiva voz da então princesa dos musicais, hoje a rainha e diva do palco, agradecer ao público com um acenar de mãos digno de Miss Universo, e na doçura simplória de quem cantou sambinhas.

É possível ver que Bibi leu nota por nota do espetáculo, pois é possível sentir cada canção nos tocar, com graça, romantismo e irreverência.

Bibi é o marco de todas as épocas. Bibi é a Belle Époque latina. É única e indispensável!

O espetáculo “Bibi. Histórias e Canções”, está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo, sextas e sábados às 21h, e aos domingos às 19h, até o final de setembro, ao valor de R$ 120,0. Em novembro ela vai cantar em Nova Iorque, e isso é incontestável e belo. Mais belo ainda é ver Bibi incansável no nosso palco!

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