quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Incrível Dr. Green discute com humor o caos da cirurgia plástica


Está em cartaz no teatro União Cultural, em São Paulo, a comédia que discute um dos mais recorridos temas atuais. Recorridos no sentido de, salas lotadas em clínicas de cirurgia plástica. A explosão de cirurgiões plásticos, quase que mágicos, nas mídias, deu origem ao texto, cheio de boas sacadas, de Gisela Marques, com a leitura e a dinâmica direção de Ricardo Severo, aos holofotes da produção de Ed Júlio, “O Incrível Dr. Green”, enche o palco de Botox, peitos, glúteos, beleza e pavor.

Com as luzes apontando ao cenário de Laura Carone, muito bem ambientado e como recortado de uma revista, daquelas que retratam os modelos das clínicas cirúrgicas que enchem suas receitas pelas tarjas bonificadas dos dourados e platinados cartões de crédito, os atores começam a desfilar seus pomposos e impecavelmente alfinetados figurinos, da obra de Elena Toscano. Gilda, personagem de Ana Andreatta, é a funcionária que serve o café e indica a sala a ser tratado o paciente. Ana executa quase que um teatro físico, com um frescor delicioso e de deleite aos dentes dispostos à sorrir. Não há quem não encontre um riso frouxo pela plateia, ao entrar Gilda, consumidora assídua das sementes de Jussara, que prometem desenhar belas silhuetas nas cinturas da mulherada.

Quem vive Jussara é nada mais, nada menos do que Nany People, nem consigo imaginar outra pessoa executando a personagem. Nany vestiu Jussara de um saco de risadas e embolsou qualquer erro cênico pra si só. Não há uma entrada sua no palco que não desvele uma gargalhada daquelas que puxam inúmeras outras. Jussara vende sementes, e faz isso na recepção da clínica Afrodite-se. Adélia, interpretada pelo refinamento de Gabriela Alves, é uma das despreocupadas com qualquer coisa que gire em torno de si, a não ser a busca por eliminar a gordura que não existe. Ela consome esporadicamente as sementes de Jussara, o que não a faz ser maior consumidora do que Gilda, que ganha qualquer cena em que estiver presente por sua mudez cheia de movimentos irreverentes, causados pelo excesso do uso das sementes.
Adélia é uma mulher elegante, de um andar cheio de ar no peito e com a ponta do nariz apontada para o defeito visível apenas aos seus olhos. Ela é o arquétipo da mulher atual, no caso de muitas, que preocupam-se ao olhar da outra mulher sobre o que veste e aquilo que está por debaixo da veste. No sofá da clínica também aquecem-se as nádegas recauchutadas de Márcia Castanho, vivida por Nyrce Levin. Márcia é uma atriz, modelo e cantora da década de 80, época em que ficaram todas as partes reais de seu corpo, na atualidade da peça, sua soberba está por cima de todas as obras barrocas e cubistas do Dr. Green, que a remoldam sob os ossos falidos desta rica em decadência.

Amanda Costa é o brinde do humor, interpretando Karina, uma jovem que foge ao padrão atual de recauchutagem e da beleza natural, assombra a imaginação dessas mulheres que aguardam ser atendidas por Dr. Green. Karina tem defeitos visíveis, mesmo por cima da roupa, onde lhe faltam seios e sobra quadril, desmanchando o imenso nariz que tira o ar de qualquer um. Todas elas buscam algo em comum, a beleza que vem e vai, tal qual o fole de uma sanfona.

Alguém teria que organizar o falatório de quatro mulheres que escondem suas personalidades verdadeiras e as deixam escapar pelo furo que as agulhas cirúrgicas cometem, a não ser a inexistência de som na voz de Gilda, a copeira que vive como um passarinho envolto de sementes submersas em serotonina, mas que tem que ser imediatamente polida por seus exacerbados e cômicos movimentos, impulsionados pela substância que a toma. Roberto Rocha, e suas calças apertadas, cintilam um homem conhecedor da sensibilidade e da robustez de uma mulher, no papel de Geraldinho, ao qual o diminutivo denota com suavidade sua simpatia. Geraldinho é o recepcionista que não perde nenhum programa de Dr. Green, que faz sucesso na televisão. Retrato fiel da realidade.
Neste brinde do humor, encontra-se o gás na pele de Nany People e sua esfuziante forma de fazer humor. Ela entorna o ritmo do espetáculo e traz nas pregas de suas coloridas roupas um elenco disposto a descolar o Botox de quem assiste à oficina mecânica humana.

Logo no início, quando a ribalta ainda nem esclarece o que há por vir, as mulheres entram mascaradas por uma pele que não lhes pertence, pela forma imaterial que as compõe. Numa dança violada nos escombros de peitos, nádegas e barrigas, Ricardo Severo, o grande diretor, que pincela por debaixo de seu cinematográfico bigode uma ninhada de talentos acertados por seu bisturi, traz uma referência ao roteiro de Almodóvar, do filme A Pele que Habito, onde tenta-se reconstruir o corpo de uma mulher que se foi, e isso é genial.

Gabriela Alves é o gole do brinde desta comédia, que desce deslumbrante ao brilho de sua personagem, um brilho maquiado, mas um brilho. Vejo um pouco de exagero na impostação de seu tom, mas acredito que haja muita mulher tentando equilibrar-se em saltos como os de sua personagem Adélia. Mas, é lindo ver Gabriela desfilar no palco. Amanda Costa conquista por sua ingenuidade inicial, abordando o texto com um humor simples e o despejando a um final triunfal. Márcia Castanho, no olhar esnobe de Nyrce Levin, dotada de um papel fenomenal e digno da arrogância e prepotência das desvalidas da verdadeira finesse , regala o texto com rigor e o interpreta com ar de dama das palavras e dos movimentos, esse é o cálice do brinde, é a taça, que trinca quando ela canta, numa voz despreparada, mas que dá para encarnar ao vencimento da carreira de sua personagem.

O dueto cênico de Roberto Rocha e sua incumbência de mediar o falatório desse amontoado de quebra-cabeças corpóreos, com nome de mulheres,  ao lado de Ana Andreatto, desenham a caricatura básica do humor, que é fazer rir. Apesar de faltar a Roberto um trago de naturalidade, de desprender-se do papel e levar aos traços de seus olhares um pouco mais de leveza ao interpretar.
A iluminação pontual de Wagner Freire lambuza o texto de Gisela Marques com maestria. Gisela pontua a importância da discussão de temas contemporâneos e acaba traçando uma moral importante em seu roteiro. Entrega às mãos de Severo toda sua grandeza para alimentar as batutas de Ed Júlio em um conjunto produtivo impecável. Acredito que o som poderia estar um pouco mais alto, os atores cantam, músicas muito bacanas, mas o áudio do acompanhamento está mal distribuído na acústica.

O excesso das cirurgias plásticas, de fato, tem dizimado algumas famílias, tornando seus personagens factuais irreconhecíveis. Ontem via-se uma avó, hoje nota-se o autorretrato do Frankenstein. Onde cabiam lábios, arreganham-se as figuras daqueles hot-dogs americanos que sobram salsichas pelas bordas. Os olhos, que outrora piscavam, aprontam-se para a diligência quase fechados, onde os pés de galinha viraram canja. Essa é a exacerbação do uso de bisturi e dos medicamentos para o caminho da então e prometida beleza. Em contrapartida há cortes que destacam a beleza, desprovidos de exageros, mentiras e ficam orçados num justo investimento. Seja à prazo, à perder de vista, por nota promissória, em compra coletiva ou no cartão as clínicas pipocam os edifícios e os corredores onde cantarolavam os açougueiros e as consultoras daqueles pavorosos cremes e perfumes.

A beleza tem um preço, por vezes pago pelo tenebroso resultado final, ou, quem sabe, um belo acerto.

“O Incrível Dr. Green” fica na imaginação do público, seja ele aprisionado na estufa dos silicones de seu tórax, e na torneada panturrilha que lhe mantém em pé nas horas de cirurgia, ou na estranheza de um homem que é belo para quem é feio. O espetáculo está em cartaz no Teatro União Cultural, em São Paulo, até o mês de novembro. Os ingressos custam entre R$ 30,00 e R$ 40,00. Sextas às 21h30, aos sábados às 21h e aos domingos às 19h30. Tomo parte de Ricardo Severo e companhia, além da fabulosa Baobá Produções Artísticas, para convidar-lhes ao espetáculo. Sem medo de identificarem-se!

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