Na
mais fiel expressão, o trio elétrico de Daniela Mercury chacoalhou o Via
Funchal, bela casa de shows paulistana, no último sábado (4). Com o gingado
africano e o cangerê baiano que só ela tem, sucessos e promissoras canções
embalaram três horas de um show que qualquer artista gostaria de fazer. Mas, só
ela sabe cantar e dançar com o compasso perfeito e uma afinação esmerada pelos
orixás que encontram-se nos batuques africanos de “Canibália”.
O
álbum “Canibália: ritmos do Brasil” é o mais recente cartaz colado pelo mundo
de Daniela Mercury, lançado pela Som Livre, em CD e DVD.
Com
o público em pé, o palco escuro clareou-se sob o vestido branco e o samba que
permeava as arestas do Via Funchal. Daniela entrava espalhando a mistura entre os
mestres Ary Barroso, Dorival Caymmi, Baden Powell e Vinícius de Moraes, em
“Benção do Samba”, que espalha o cheiro de arruda na poesia do batuque baiano e
carioca das canções “Na Baixa do Sapateiro”, “O Samba da Minha Terra” e “Samba
da Benção”, quando numa última palmada nos atabaques africanos esmaecem os
nobres poetas para o anúncio do tambor mulato em “Preta - Eu sou Preto”, de
Daniela em parceria com Seu Jorge, e “Sorriso Negro”, sucesso na voz de Dona
Ivone Lara.
As
canções caem ao público como as contas enfileiradas na guia de Nanã e sua
imposição sobre o ibiri. Soam como o som da corrente água de Oxum e o brilho do
sol dourado n’água. Correm pelos pés aquecidos do público como a quentura da
lava de Xangô e cortam os extremos do palco tal qual a espada de Iansã. Os
olhos de Daniela não param de brilhar um instante sequer, e são raros brilhos,
chamados lágrimas, que moram no olhar de quem ama a música com essa devoção.
“Canibália”
é uma tribo de peles e couros empoleirados por quem coleciona boa música e a
ínfima relação entre a cultura e o som, e a antropologia da fé e dos
movimentos. Daniela, enquanto canta “Iluminado”, de Vander Lee, tem o vestido,
que outrora embalava sua voz em “Como Nossos Pais”, de Belchior, colorido pelas
cerdas e a aquarela de Iuri Sarmento. A canção vai despejando tinta pela
brancura e desviando pelas curvas do corpo de Daniela, formando corações ao
sotaque barroco e iluminando cores que salientam a impecável instrumentação
sorrateira da música.
Pelas
abstratas ladeiras do Pelourinho, tradicional centro histórico de Salvador,
cidade natal de Daniela, salteava o cheiro dos abarás e acarajés e a fritura do
dendê à flor de Daniela Mercury nas cores do sucesso de “O Mais Belo dos
Belos”, e suas braçadas invocando as batutas do Olodum, que ganhou destaque em
“O Canto da Cidade”, álbum de 1992 que repercutiu ao mundo. Era possível
também, sentir-se entre a Barra e Ondina, famoso circuito do carnaval baiano à
beira-mar, quando do álbum “Música de Rua”, renasce “Por Amor ao Ilê”, girando
saias e gingando as pernas dos filhos de santos nas ladeiras que cheiram ondas
de mar.
Para
esfriar os passos e recolher o suor da pipoca paulistana e o giro do mundo que
reunia o público no show, Daniela rasgou a música para dar entrada à literatura
de Jorge Amado. Ao lado dos atores Bruno Belarmino e Fred Steffen, em cima de
uma cama que centrava o palco, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” ganha a cena.
Com o galante de Teodoro, o farmacêutico de microfibra e chapéu branco, e as
caídas largadas de Vadinho, com peito nu e as ceroulas arriadas. Ao toque
brutal da sensualidade, Daniela penteia os pelos de Vadinho com suas pernas e
eleva a quentura da cama, que abrigava uma alma e um corpo às margens de uma
mulher.
Daniela
Mercury aos oito anos já fazia dança. Aos treze decidiu que seria cantora, após deslumbrar-se com um show de Elis Regina. Na década de 80, foi vocalista da Banda Eva, triunfando hoje, por sua
trajetória o título de rainha de seus ritmos. Ela chegou a ser vocal de apoio
na banda de Gilberto Gil, e em 1991 gravou seu primeiro álbum. Em 1992 no projeto
“Som do Meio Dia”, no Museu de Arte de São Paulo, o MASP, sem imaginar sua
potencia artística, reuniu mais de 30 mil pessoas ao “Canto da Cidade” e
revirou prêmios e os olhos de contemplados músicos brasileiros e do mundo todo.
Como embaixadora da UNICEF realiza em parceria com o Fundo, o Instituto Sol da
Liberdade, que itinerante, realiza pelas entranhas do Brasil um projeto de
valorização das culturas nas comunidades que mais sofrem com os números de
desenvolvimento.
Não
quero pautar boatos que sapatearam a carreira de Daniela, eu gosto de música,
de cultura e som. Ela não é política. Ela é artista, sua responsabilidade está
para a música, e não para o pessoal.
Com
“Música de Rua” e o “Sol do Sul” o Brasil hasteia a bandeira de seus verdes
campestres e o azul que brilha o céu no mar, no banho do ouro de Oxum e os
minérios que fortalecem a voz dessa imensurável artista. “Rapunzel”, despeja
suas tranças e arrasta todo mundo para a corda de “Maimbê Dandá” e as saudosas
marchinhas de carnaval. Daniela via-se num trio elétrico, para o qual compôs
“Trio em Transe”, e lá de cima do palco fitava as palmadas de aplausos do
público com o coração em festa.
Num
chute ao gol, Cafu e Pelé encontram-se na inédita canção com Daniela “Cheia de
Graça”, e Carmem Miranda, com dorso de seda, colar de bolas e as dobradas de
pulso que embrenhavam os balangandãs e sua carioca baianidade portuguesa solta
a flautada voz numa belíssima gravação, onde Daniela Mercury acompanha cantando
“O Que é Que a Baiana Tem?”, de Caymmi. O telão colore ao fundo e salpica a
iluminação avermelhada que desce o veludo de Iansã para as dobradas de Daniela
que veste às mãos o mato verde e o símbolo de eru para rabiscar o palco na gira
de “Oyá por Nós”, parceria sua com Margareth Menezes.
Os
bailarinos brincam na seriedade do balé africano e embalam os corpos como se
fossem elásticos vivos, e o kuduro de Angola bate os joelhos do público todo,
inclusive os meus, que não ficariam de fora. “Quero Ver o Mundo Sambar” arrasta
os pés dos sambistas natos e enquadra o álbum “Canibália” como um mito dos
ritmos brasileiros, que nascem diariamente nos pés do povo e no sangue da raça
latino-africana que encandeia a cultura deste país. O show é um índio canibal,
que nutre-se de tons, timbres, evoluções e gestos. Daniela é um encontro entre
os atabaques de Ketu e Jeje, e a imponência rítmica de Mãe Cleusa, que deu-lhe
a voz de Nanã.
Sem
as luvas azul e vermelha, e despida da marquise do MASP, Daniela Mercury deixa
que o público cante “O Canto da Cidade”, enquanto revive à dança de seu próprio
eixo os vinte anos de seu notável sucesso. Sem Daniela no palco, o público
despede-se da cantora, que sabiamente foi dita por Beth Carvalho: “esta mulher
trouxe o samba de volta para o Brasil”. Quem dera o mundo fosse a voz de
Daniela! Quisera qualquer cantora ter o swing e o som dela. Ninguém canta e
dança na mesma voracidade. O carnaval viveu seus dias de glória no Via Funchal,
graças ao saboroso projeto “Mulheres do Brasil”, que ainda trará para a casa
Alcione, Margareth Menezes, Gal Costa, Céu e Ana Cañas. Essas são cartas, que
qualquer bom baralho não tem.
Daniela,
continue a viver a música! Seu som é raridade. Seus rompimentos rítmicos
encarnam templos da música voltando a ouvir graúdas composições e marcam
gerações. Ela não é do axé, nem do samba, nem da cantiga popular. Ela o toque
africano, de pele branca e sangue negro, na música total do Brasil.
Daniela
Mercury trouxe o Pôr do Som, que mistura ao toque de sua voz ao balanço das
águas do Farol da Barra, em Salvador, realizado todo primeiro dia do ano, para
São Paulo, e encontrou seu trio da Barra e Ondina, no Campo Grande dos
paulistanos.
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