terça-feira, 7 de agosto de 2012

Daniela Mercury traz o trio elétrico da Bahia para o Via Funchal, em SP


Na mais fiel expressão, o trio elétrico de Daniela Mercury chacoalhou o Via Funchal, bela casa de shows paulistana, no último sábado (4). Com o gingado africano e o cangerê baiano que só ela tem, sucessos e promissoras canções embalaram três horas de um show que qualquer artista gostaria de fazer. Mas, só ela sabe cantar e dançar com o compasso perfeito e uma afinação esmerada pelos orixás que encontram-se nos batuques africanos de “Canibália”.

O álbum “Canibália: ritmos do Brasil” é o mais recente cartaz colado pelo mundo de Daniela Mercury, lançado pela Som Livre, em CD e DVD.

Com o público em pé, o palco escuro clareou-se sob o vestido branco e o samba que permeava as arestas do Via Funchal. Daniela entrava espalhando a mistura entre os mestres Ary Barroso, Dorival Caymmi, Baden Powell e Vinícius de Moraes, em “Benção do Samba”, que espalha o cheiro de arruda na poesia do batuque baiano e carioca das canções “Na Baixa do Sapateiro”, “O Samba da Minha Terra” e “Samba da Benção”, quando numa última palmada nos atabaques africanos esmaecem os nobres poetas para o anúncio do tambor mulato em “Preta - Eu sou Preto”, de Daniela em parceria com Seu Jorge, e “Sorriso Negro”, sucesso na voz de Dona Ivone Lara.

As canções caem ao público como as contas enfileiradas na guia de Nanã e sua imposição sobre o ibiri. Soam como o som da corrente água de Oxum e o brilho do sol dourado n’água. Correm pelos pés aquecidos do público como a quentura da lava de Xangô e cortam os extremos do palco tal qual a espada de Iansã. Os olhos de Daniela não param de brilhar um instante sequer, e são raros brilhos, chamados lágrimas, que moram no olhar de quem ama a música com essa devoção.

“Canibália” é uma tribo de peles e couros empoleirados por quem coleciona boa música e a ínfima relação entre a cultura e o som, e a antropologia da fé e dos movimentos. Daniela, enquanto canta “Iluminado”, de Vander Lee, tem o vestido, que outrora embalava sua voz em “Como Nossos Pais”, de Belchior, colorido pelas cerdas e a aquarela de Iuri Sarmento. A canção vai despejando tinta pela brancura e desviando pelas curvas do corpo de Daniela, formando corações ao sotaque barroco e iluminando cores que salientam a impecável instrumentação sorrateira da música.
Pelas abstratas ladeiras do Pelourinho, tradicional centro histórico de Salvador, cidade natal de Daniela, salteava o cheiro dos abarás e acarajés e a fritura do dendê à flor de Daniela Mercury nas cores do sucesso de “O Mais Belo dos Belos”, e suas braçadas invocando as batutas do Olodum, que ganhou destaque em “O Canto da Cidade”, álbum de 1992 que repercutiu ao mundo. Era possível também, sentir-se entre a Barra e Ondina, famoso circuito do carnaval baiano à beira-mar, quando do álbum “Música de Rua”, renasce “Por Amor ao Ilê”, girando saias e gingando as pernas dos filhos de santos nas ladeiras que cheiram ondas de mar.

Para esfriar os passos e recolher o suor da pipoca paulistana e o giro do mundo que reunia o público no show, Daniela rasgou a música para dar entrada à literatura de Jorge Amado. Ao lado dos atores Bruno Belarmino e Fred Steffen, em cima de uma cama que centrava o palco, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” ganha a cena. Com o galante de Teodoro, o farmacêutico de microfibra e chapéu branco, e as caídas largadas de Vadinho, com peito nu e as ceroulas arriadas. Ao toque brutal da sensualidade, Daniela penteia os pelos de Vadinho com suas pernas e eleva a quentura da cama, que abrigava uma alma e um corpo às margens de uma mulher.
Daniela Mercury aos oito anos já fazia dança. Aos treze decidiu que seria cantora, após deslumbrar-se com um show de Elis Regina. Na década de 80, foi vocalista da Banda Eva, triunfando hoje, por sua trajetória o título de rainha de seus ritmos. Ela chegou a ser vocal de apoio na banda de Gilberto Gil, e em 1991 gravou seu primeiro álbum. Em 1992 no projeto “Som do Meio Dia”, no Museu de Arte de São Paulo, o MASP, sem imaginar sua potencia artística, reuniu mais de 30 mil pessoas ao “Canto da Cidade” e revirou prêmios e os olhos de contemplados músicos brasileiros e do mundo todo. Como embaixadora da UNICEF realiza em parceria com o Fundo, o Instituto Sol da Liberdade, que itinerante, realiza pelas entranhas do Brasil um projeto de valorização das culturas nas comunidades que mais sofrem com os números de desenvolvimento.

Não quero pautar boatos que sapatearam a carreira de Daniela, eu gosto de música, de cultura e som. Ela não é política. Ela é artista, sua responsabilidade está para a música, e não para o pessoal.

Com “Música de Rua” e o “Sol do Sul” o Brasil hasteia a bandeira de seus verdes campestres e o azul que brilha o céu no mar, no banho do ouro de Oxum e os minérios que fortalecem a voz dessa imensurável artista. “Rapunzel”, despeja suas tranças e arrasta todo mundo para a corda de “Maimbê Dandá” e as saudosas marchinhas de carnaval. Daniela via-se num trio elétrico, para o qual compôs “Trio em Transe”, e lá de cima do palco fitava as palmadas de aplausos do público com o coração em festa.

Num chute ao gol, Cafu e Pelé encontram-se na inédita canção com Daniela “Cheia de Graça”, e Carmem Miranda, com dorso de seda, colar de bolas e as dobradas de pulso que embrenhavam os balangandãs e sua carioca baianidade portuguesa solta a flautada voz numa belíssima gravação, onde Daniela Mercury acompanha cantando “O Que é Que a Baiana Tem?”, de Caymmi. O telão colore ao fundo e salpica a iluminação avermelhada que desce o veludo de Iansã para as dobradas de Daniela que veste às mãos o mato verde e o símbolo de eru para rabiscar o palco na gira de “Oyá por Nós”, parceria sua com Margareth Menezes.
Os bailarinos brincam na seriedade do balé africano e embalam os corpos como se fossem elásticos vivos, e o kuduro de Angola bate os joelhos do público todo, inclusive os meus, que não ficariam de fora. “Quero Ver o Mundo Sambar” arrasta os pés dos sambistas natos e enquadra o álbum “Canibália” como um mito dos ritmos brasileiros, que nascem diariamente nos pés do povo e no sangue da raça latino-africana que encandeia a cultura deste país. O show é um índio canibal, que nutre-se de tons, timbres, evoluções e gestos. Daniela é um encontro entre os atabaques de Ketu e Jeje, e a imponência rítmica de Mãe Cleusa, que deu-lhe a voz de Nanã.

Sem as luvas azul e vermelha, e despida da marquise do MASP, Daniela Mercury deixa que o público cante “O Canto da Cidade”, enquanto revive à dança de seu próprio eixo os vinte anos de seu notável sucesso. Sem Daniela no palco, o público despede-se da cantora, que sabiamente foi dita por Beth Carvalho: “esta mulher trouxe o samba de volta para o Brasil”. Quem dera o mundo fosse a voz de Daniela! Quisera qualquer cantora ter o swing e o som dela. Ninguém canta e dança na mesma voracidade. O carnaval viveu seus dias de glória no Via Funchal, graças ao saboroso projeto “Mulheres do Brasil”, que ainda trará para a casa Alcione, Margareth Menezes, Gal Costa, Céu e Ana Cañas. Essas são cartas, que qualquer bom baralho não tem.
Daniela, continue a viver a música! Seu som é raridade. Seus rompimentos rítmicos encarnam templos da música voltando a ouvir graúdas composições e marcam gerações. Ela não é do axé, nem do samba, nem da cantiga popular. Ela o toque africano, de pele branca e sangue negro, na música total do Brasil.

Daniela Mercury trouxe o Pôr do Som, que mistura ao toque de sua voz ao balanço das águas do Farol da Barra, em Salvador, realizado todo primeiro dia do ano, para São Paulo, e encontrou seu trio da Barra e Ondina, no Campo Grande dos paulistanos.

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