Tempos
passaram, quando as moças juntaram-se para reunir os papéis de uma das mais
gloriosas peças já montadas no Brasil, hoje, ainda moças, elas voltam para
repartir tudo que ficou do passado. Não do espetáculo, sim da partilha da mãe,
que faleceu e reuniu em seu velório as quatro filhas, cada qual com uma
personalidade e um perfil cômico igualável a qualquer membro de qualquer
família. O espetáculo de Miguel Falabella deixa qualquer autor e diretor
babando, ainda mais regendo os furacões de nome Arlete Salles, Susana Vieira,
Thereza Piffer e Patricya Travassos, no papel que era encenado por Natália do
Vale. “A Partilha” é a glória da comédia e está em cartaz em São Paulo, no
Teatro Frei Caneca.
Qual
mãe nunca ganhou um presente, ou comprou algo de valor ou não e guardou
enrolado num armário? Vem sempre alguém pra dizer que em caixão não há gaveta e
morto não tem a opção de levar nada junto. Pois, então! Eu já vi isso na minha
própria família e de pronto identifiquei-me. A matriarca deixa as quatro
filhas, um apartamento com uma discreta vista para o mar, algumas antiguidades
e muita história divagando aquela sala. Elas precisam fazer a partilha de tudo,
inclusive do imóvel.
Quem
nunca juntou cupons para ganhar itens em promoções? E será que isso entra na
partilha?
O
velório abre o espetáculo, com um cenário de deixar-nos com o queixo arrastando
no chão. Selma, a tijucana, é daquelas irmãs conservadoras, vive um casamento
tedioso junto a um militar e faz-se de coitada o tempo todo, evidentemente é
ela quem organizou os preparos do velório, que não recebe ninguém, além das
outras três irmãs. Lúcia chegou de Paris, deixou a vida no Brasil, filho e
marido, pra viver uma paixão por lá, ela é a mais velha das irmãs. Regina é uma
mulher esotérica, abusa um pouco mais nas vestes e pensa na vida de forma
liberal, ela chegou espalhafatosa e até bolsada deu na morta. Laura é uma
jornalista, a caçula, intelectual e mais contida, revela sua homossexualidade
às irmãs e tem uma cabeça um tanto mais jovial.
O
cenário, de Beli Araújo, é perfeito, abraça as cenas de forma platônica e
permite que a iluminação encarne às cenas com uma beleza e simplicidade, tal
qual o roteiro. É claro que só podia ser obra de Paulo César Medeiros, no
desenho de luz. Os figurinos de Sonia Soares misturam atrizes às personagens e
nos permitem visualisá-las de forma mais íntima e tudo fica bem a vontade. O
som, sem falhas e com ritmo é de Gabriel D’angelo.
O
roteiro do Falabella é algo tão simples e tão bem pensado, mas parece que veio
despejado de olhares a todos os lados e acontecimentos a sua volta, que
sentimo-nos tão próximo daquela realidade do espetáculo. Digo sentimo-nos, no
plural, porque é audível e visual as gargalhadas e a descontração do público
durante toda a peça. O espetáculo não perdeu sua originalidade e chegou bem
moldado aos dias de hoje. É um humor tão sadio, tão gostoso, sem vulgaridade e
nem insultos ao teatro. Ele dirigiu essas meninas com uma liberdade, que elas
divertem-se em cena como se não tivessem lido nenhum texto e sim parecem
lembrar genuinamente àquilo que foi feito na década de 90.
Arlete
Salles dá vida, novamente, à Lúcia. Triunfal, humoristicamente bela como só ela
sabe ser. Arlete vem com uma comédia suave em seu script, que dá vontade de
passar a noite ouvindo ela contar coisas. Ela nos tira risadas encruadas da
gente. Susana Vieira, no papel de Regina, já é de um riso mais frouxo, fácil,
ela sabe fazer isso muito bem. Gosto muito dela atuando, ela tem uma
experiência que a faz sentir-se em casa num palco. E, na verdade, essa é sua
mais íntima morada. Susana, a atriz, e Regina, a personagem, cruzam-se o tempo
todo, são pessoas únicas, elas emprestam-se uma a outra de forma linda. Thereza
Piffer tem todo seu jeitão de jogar-se por inteira nas cenas, de deixar sua
expressão facial tomar conta do texto e interpretar enquanto a outra fala, isso
é um trabalho meticuloso, que já é natural pra alguém deste quilate. Thereza
interpreta a caçula Laura e, por incrível que pareça, seu jeito mais direto não
esmaece a doçura de uma caçula, isso é um intrínseco do texto e um
subconsciente do personagem. Patricya Travassos merece muitos aplausos em pé,
vivendo a simplicidade e, quase que ingenuidade de Selma, enlaça o padrão que
arrastou-se por anos e anos de uma mulher manipulada, em todos os sentidos, por
seu marido, e leva a carência de seu relacionamento frustrado para as quatro
paredes da partilha entre suas irmãs. Patricya dá voz a uma grande atriz, num
papel que a valoriza no humor.
A
Partilha reúne um trecho de cada família dentro dessas quatro irmãs, elas
brigam, elas amam-se, elas ficam bêbadas e divertem-se com toda aquela situação
que poderia ser para derramar lágrimas.
Um bom humor, que nasce num velório, tem tudo pra ganhar os dentes
abertos do público, e este espetáculo segue uma linha íntima, entre a realidade
e o humor. Um bom humor!
Num
artigo que escrevi há algum tempo eu cito A Partilha como a cartada mais
elegante e escancarada do teatro brasileiro, não descartando tudo que já foi
feito com mérito. Mas, o espetáculo é de uma identificação tão próxima, que
fica difícil não usar adjetivos ligados ao texto. Na época em que nasceu, na
década de 90, A Partilha não tinha um nome comercial, nem imaginava-se o êxito
que poderia alcançar. O espetáculo acabou seis anos em cartaz, com montagens em
doze países e encenadas simultaneamente, com diferentes elencos, em São Paulo e
no Rio de Janeiro. Inspirações e continuações foram geradas pelo virtuoso passo
de Falabella.
O
espetáculo tem uma moral importante, tem uma discussão indispensável. No mesmo
artigo em que falei sobre A Partilha, também citei a importância do riso, que é
mencionada na peça junto a Henri Bergson, usei de suas teorias para
exemplificar exatamente a proposta de A Partilha. Para Bergson, rimos daquilo
que nos substituí, daquela realidade que vivemos e não notamos, por fazermos
vistas grossas ao nosso próprio cotidiano. Está exprimida essa minha interpretação
sobre o riso, para Bergson, no texto e na direção de Miguel Falabella, com a encenação
de quatro leões das artes cênicas.
Ser
um novo sucesso 20 anos depois é um teste de ferro, bem passado por eles.
Eu
acho que nunca vão conseguir fazer algo parecido com A Partilha. Mas, que façam
outros humores, é importante continuar!
A
Partilha está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo. Os ingressos
custam entre R$ 80,00 e R$ 120,00. Podem ser comprados na bilheteria do teatro
e pelo Ingresso Rápido, na internet. A peça acontece nas sextas às 21h30. Aos
sábados brilhantemente às 19h e às 21h30 e aos domingos às 18h. A temporada é
prevista até o dia 25 de novembro.
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