segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Após mais de vinte anos A Partilha, de Miguel Falabella, volta com êxito


Tempos passaram, quando as moças juntaram-se para reunir os papéis de uma das mais gloriosas peças já montadas no Brasil, hoje, ainda moças, elas voltam para repartir tudo que ficou do passado. Não do espetáculo, sim da partilha da mãe, que faleceu e reuniu em seu velório as quatro filhas, cada qual com uma personalidade e um perfil cômico igualável a qualquer membro de qualquer família. O espetáculo de Miguel Falabella deixa qualquer autor e diretor babando, ainda mais regendo os furacões de nome Arlete Salles, Susana Vieira, Thereza Piffer e Patricya Travassos, no papel que era encenado por Natália do Vale. “A Partilha” é a glória da comédia e está em cartaz em São Paulo, no Teatro Frei Caneca.

Qual mãe nunca ganhou um presente, ou comprou algo de valor ou não e guardou enrolado num armário? Vem sempre alguém pra dizer que em caixão não há gaveta e morto não tem a opção de levar nada junto. Pois, então! Eu já vi isso na minha própria família e de pronto identifiquei-me. A matriarca deixa as quatro filhas, um apartamento com uma discreta vista para o mar, algumas antiguidades e muita história divagando aquela sala. Elas precisam fazer a partilha de tudo, inclusive do imóvel.

Quem nunca juntou cupons para ganhar itens em promoções? E será que isso entra na partilha?

O velório abre o espetáculo, com um cenário de deixar-nos com o queixo arrastando no chão. Selma, a tijucana, é daquelas irmãs conservadoras, vive um casamento tedioso junto a um militar e faz-se de coitada o tempo todo, evidentemente é ela quem organizou os preparos do velório, que não recebe ninguém, além das outras três irmãs. Lúcia chegou de Paris, deixou a vida no Brasil, filho e marido, pra viver uma paixão por lá, ela é a mais velha das irmãs. Regina é uma mulher esotérica, abusa um pouco mais nas vestes e pensa na vida de forma liberal, ela chegou espalhafatosa e até bolsada deu na morta. Laura é uma jornalista, a caçula, intelectual e mais contida, revela sua homossexualidade às irmãs e tem uma cabeça um tanto mais jovial.
O cenário, de Beli Araújo, é perfeito, abraça as cenas de forma platônica e permite que a iluminação encarne às cenas com uma beleza e simplicidade, tal qual o roteiro. É claro que só podia ser obra de Paulo César Medeiros, no desenho de luz. Os figurinos de Sonia Soares misturam atrizes às personagens e nos permitem visualisá-las de forma mais íntima e tudo fica bem a vontade. O som, sem falhas e com ritmo é de Gabriel D’angelo.

O roteiro do Falabella é algo tão simples e tão bem pensado, mas parece que veio despejado de olhares a todos os lados e acontecimentos a sua volta, que sentimo-nos tão próximo daquela realidade do espetáculo. Digo sentimo-nos, no plural, porque é audível e visual as gargalhadas e a descontração do público durante toda a peça. O espetáculo não perdeu sua originalidade e chegou bem moldado aos dias de hoje. É um humor tão sadio, tão gostoso, sem vulgaridade e nem insultos ao teatro. Ele dirigiu essas meninas com uma liberdade, que elas divertem-se em cena como se não tivessem lido nenhum texto e sim parecem lembrar genuinamente àquilo que foi feito na década de 90.

Arlete Salles dá vida, novamente, à Lúcia. Triunfal, humoristicamente bela como só ela sabe ser. Arlete vem com uma comédia suave em seu script, que dá vontade de passar a noite ouvindo ela contar coisas. Ela nos tira risadas encruadas da gente. Susana Vieira, no papel de Regina, já é de um riso mais frouxo, fácil, ela sabe fazer isso muito bem. Gosto muito dela atuando, ela tem uma experiência que a faz sentir-se em casa num palco. E, na verdade, essa é sua mais íntima morada. Susana, a atriz, e Regina, a personagem, cruzam-se o tempo todo, são pessoas únicas, elas emprestam-se uma a outra de forma linda. Thereza Piffer tem todo seu jeitão de jogar-se por inteira nas cenas, de deixar sua expressão facial tomar conta do texto e interpretar enquanto a outra fala, isso é um trabalho meticuloso, que já é natural pra alguém deste quilate. Thereza interpreta a caçula Laura e, por incrível que pareça, seu jeito mais direto não esmaece a doçura de uma caçula, isso é um intrínseco do texto e um subconsciente do personagem. Patricya Travassos merece muitos aplausos em pé, vivendo a simplicidade e, quase que ingenuidade de Selma, enlaça o padrão que arrastou-se por anos e anos de uma mulher manipulada, em todos os sentidos, por seu marido, e leva a carência de seu relacionamento frustrado para as quatro paredes da partilha entre suas irmãs. Patricya dá voz a uma grande atriz, num papel que a valoriza no humor.
A Partilha reúne um trecho de cada família dentro dessas quatro irmãs, elas brigam, elas amam-se, elas ficam bêbadas e divertem-se com toda aquela situação que poderia ser para derramar lágrimas.  Um bom humor, que nasce num velório, tem tudo pra ganhar os dentes abertos do público, e este espetáculo segue uma linha íntima, entre a realidade e o humor. Um bom humor!

Num artigo que escrevi há algum tempo eu cito A Partilha como a cartada mais elegante e escancarada do teatro brasileiro, não descartando tudo que já foi feito com mérito. Mas, o espetáculo é de uma identificação tão próxima, que fica difícil não usar adjetivos ligados ao texto. Na época em que nasceu, na década de 90, A Partilha não tinha um nome comercial, nem imaginava-se o êxito que poderia alcançar. O espetáculo acabou seis anos em cartaz, com montagens em doze países e encenadas simultaneamente, com diferentes elencos, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Inspirações e continuações foram geradas pelo virtuoso passo de Falabella.

O espetáculo tem uma moral importante, tem uma discussão indispensável. No mesmo artigo em que falei sobre A Partilha, também citei a importância do riso, que é mencionada na peça junto a Henri Bergson, usei de suas teorias para exemplificar exatamente a proposta de A Partilha. Para Bergson, rimos daquilo que nos substituí, daquela realidade que vivemos e não notamos, por fazermos vistas grossas ao nosso próprio cotidiano. Está exprimida essa minha interpretação sobre o riso, para Bergson, no texto e na direção de Miguel Falabella, com a encenação de quatro leões das artes cênicas.
Ser um novo sucesso 20 anos depois é um teste de ferro, bem passado por eles.

Eu acho que nunca vão conseguir fazer algo parecido com A Partilha. Mas, que façam outros humores, é importante continuar!

A Partilha está em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo. Os ingressos custam entre R$ 80,00 e R$ 120,00. Podem ser comprados na bilheteria do teatro e pelo Ingresso Rápido, na internet. A peça acontece nas sextas às 21h30. Aos sábados brilhantemente às 19h e às 21h30 e aos domingos às 18h. A temporada é prevista até o dia 25 de novembro.

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