segunda-feira, 27 de maio de 2013

Marília Pêra é um batalhão de mulheres e além de tudo, “Dolly”


Uma outra mulher, com o mesmo brilho das outras nos olhos, com as diferenças de personalidade que só encaixam-se a notoriedade e ao vasto caderno de Marília Pêra. A mulher tímida, sensível e gigante! Tão gigante, que em seus incontáveis trabalhos coube em suas mãos, movimentos, alma e mente um batalhão de mulheres de textos fartos. Hoje, além de ser ela mesma, Marília enfrenta as disputadas noites paulistanas vivendo Dolly Levi, ao lado de Miguel Falabella, no musical “Alô, Dolly!”.

O musical, de genética antiga, ganhou versão brasileira na recente direção de Miguel Falabella, que ao mesmo tempo interpreta Horácio Vandergelder. O homem rude, que cairá aos encantos de Dolly. O ator de currículo pomposo, que foi seduzido pela doçura e indulgência artística de Marília Pêra.

O espetáculo é fiel e generoso a versão da Broadway... empresta ao folheto original a astúcia brasileira da cena, canto e dança.

Dolly é uma casamenteira, além de todos os outros irreverentes dotes que adoçam seus cartões de visitas na pequena e profunda bolsa. Contratada por Horácio, o avarento comerciante de pose quase chucra, para encontrar-lhe uma esposa, deslumbra-se por suas posses e acaba por tentar ela própria casar-se com ele. A trama envolve um ótimo humor algemado a cada personagem, como se fosse uma ópera escrita a duas mãos – Molière e Plauto. Suas almas artísticas encontram-se impressas a digital do autor de “Hello, Dolly!”, Michael Stewart.

O grande trunfo deste musical sempre esteve no título, Dolly ganhou o corpo de inúmeras mulheres no tempo e no mundo. A primeira versão do espetáculo subiu ao palco em 1938 e não obteve sucesso. Com outro nome, era uma peça comum, inspirada na frieza de textos austríacos e ingleses. Desta vez, com outro título, “A Casamenteira”, Ruth Gordon interpretou a primeira Dolly e obteve sucesso, no ano de 1955.

Ainda era preciso mais para o texto. A magnitude tomou conta do roteiro adaptado ao musical “Hello, Dolly!”, Carol Channing eternizou a personagem principal do espetáculo no teatro. De voz longa e elegância nos passos, a atriz é até hoje um dos melhores garimpos da Broadway. Naquele período o musical recebeu dez Tony Awards, o prêmio mais alto do teatro. Competindo com o musical “Funny Girl”, estrelado por Barbara Streisand, Dolly manteve-se de pé como um dos maiores sucessos no mundo.

Anos depois, Gene Kelly coloca Dolly em frente às câmeras, na voz e na beleza de Barbara Streisand. Mas ela era nova demais para o papel, e havia perdido o Tony para Carol, quando no mesmo ano disputavam por musicais diferentes. O filme caiu frente a grandeza do musical. Ainda sim, a personagem vestiu-se da elegância vocal de Barbara. No Brasil, o espetáculo cairia aos pés do Teatro João Caetano, em 1966, no Rio de Janeiro.

Dolly teria um novo prestígio, desta vez sua irreverência e elegância viria aos olhos da irresvalável Bibi Ferreira. Após o sucesso de “My Fair Lady”, Bibi tornara-se a dama dos musicais no país da música. O Brasil gerava sua Broadway e a diva dos palcos, uma gestação univitelina viva até os dias de hoje.

Ao lado de Paulo Fortes, um dos maiores barítonos brasileiros e o mais evidente da época, Victor Berbara dirigiu a disciplina, o rigor, o humor e a beleza do canto de Bibi. Era ela, o auto e o alto de Dolly. O auto, porque é de um “humor divino”. O alto, porque é de um canto inigualável. Pude vê-la, aos 90 anos, cantando aquilo que cantara há tanto tempo. Com a mesma doçura nos ombros que mexem-se ao bailar dos olhos e à vibratilidade da voz.

Anos correram, as fotos ganharam cores e Miguel Falabella o mecanismo dos musicais. Incluiria aos seus sucessos o mundo da voz, dança e cena. Calçados ao palco que adotara como casa. Nas mãos dele, Dolly ganharia uma nova lã... paetês de brilho viscoso e plumas e a dama da “new Broadway” brasileira. Aos 70 anos, ainda feito meninota, Marília Pêra emprestaria o seu talento ao livro de Dolly.

Quem vive no teatro, um dia cruza suas histórias com as histórias dos outros... Marília subiu ao palco de Bibi, em “My Fair Lady”, aos 18 anos de idade. Quando Bibi contracenava com Paulo Autran. Marília valseava de bailarina. Depois, foi dirigida por Bibi em “Deus lhe Pague”... hoje estão no mesmo caderno, uma, com a foto monocromática, a outra em cores. Em ambas imagens, a mesma personagem.
Marília viveu o período glorioso do teatro, da música, da dança... Marília vive a evolução da arte de maneira jovial. Assim como Bibi, Marília parece a mesma, sempre melhor!

Enquanto os teatros viviam os tombamentos ilegítimos da censura... Marília apanhou dos militares. Marília ganhou a sabedoria ainda que na palmada. É assim que um ator sobrevive e faz longa sua vida, na porrada da arte.

Era preciso o penhor, a entrega das economias. Venderam vestidos, obras, carro. Marília Pêra perdeu a única casa. O teatro sobrevivia assim, do que havia entre as unhas, na pele, no couro dos cabelos, no rasgo das feridas. O teatro era o ser mais íntimo entre o homem e seu exercício. Era o ofício da verdade e da paixão.

Estreou nos palcos pelo brilho dos olhos do pai, que também era ator. Na companhia de Henriette Morineau, aos quatro anos de idade, Marília aprendera o que era a fênix de um ator. Morrer num dia, nascer no outro. Como filha de “Medéia”, tinha o corpo e a mente dadas tão cedo ao teatro.

Era ainda a bailaria, que dançava aos olhares da vareta de seu coreógrafo, com o risco de num repente levar uma “varada” nas pernas... (assim era o rigor da época).

Marília foi Chanel, foi Carmem Miranda, além de outras, foi Dalva de Oliveira... hoje é Dolly. Eternizando a “savoir fair” dela e da personagem. Ela tem a physique du rôle que antes, parecia ser apenas de Bibi. Elas cantam como deusas e fazem rir com a propriedade burlesca e sábia do alto escalão teatral.

Em pensar que todas essas mulheres estiveram um pouco em Marília... mas ouso em achar que são elas a terem, cada uma, um pouco de Marília!

“Alô, Dolly!” está em cartaz no Teatro Bradesco, em São Paulo.

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