Foi
difícil parar quieto neste final de semana em São Paulo, entre um dia e outro,
de agradáveis noites, o Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, recebia Angela
Ro Ro e Ney Matogrosso num encontro orgástico. No Teatro Fecap, o mais nobre
dueto da música brasileira encontrava-se para relembrar 60 anos de sucesso,
Angela Maria e Cauby Peixoto eram aqueles jovens seresteiros outra vez.
Angela Ro Ro e Ney Matogrosso
Quando
tudo parecia muito calmo, um furacão inquieto tomou conta do palco do Teatro
Paulo Autran, era Angela com seu habitual preto e os tênis que lhe permitem
percorrer o espaço todo. Assumidamente de cabelos brancos, sua idade nem parece
chegar perto da realidade, a realidade dela é uma outra bem similar daquela
disposição da época do grupinho com Cazuza pelas ruas do Rio de Janeiro, agora
um pouco mais branda, também, sem Cazuza, mas com a doce presença de Ney
Matogrosso, uma emulsão de voz e deleite numa coisa chamada canção.
Para
Angela, nada mais que um piano eletrônico com todas as bases prontas e sua
irreverência contavam o elenco do show, logicamente que Ney entraria depois,
como seu convidado. Ela é esfuziante, conta histórias, faz seu público todo
cair às gargalhadas, e mais do que isso distribuí aos cantos do teatro uma voz
que ainda não perdeu seus graves e a rouquidão de uma tênue perfeição. Angela
sapecou sucessos que foram cantados juntos a plateia, “Tola foi você”, “Came e
Case”, e “Fogueira”, todas de sua autoria, esta última foi gravada por Maria
Bethânia. Ela também mandou “Ne me quitte pas”, de Brel, e mostrou que sua voz
é a mesma, e empunha uma masculinidade afeminada, típica de seu jeitão
pitoresco de ser ela própria, e que convenhamos, é incrível. É claro que senti
falta de uma banda enchendo aquele palco de notas, não gosto muito de bases
prontas. De Caetano Veloso, ela cantou “Escândalo”, e “Compasso”, de Mac Cord e
Ro Ro.
Do
outro lado do palco um piano dava o tom de sua história, desde os cinco anos de
idade Ro Ro tira notas de um daqueles. Enquanto o regime militar comia solto no
Brasil, ela estava em Londres, onde trabalhava em restaurantes e aproveitada
para cantar em boates. O sucesso começou mesmo na década de 70, quando ela
volta ao Rio e gravou seu primeiro disco, depois de dar canjas em boates
cariocas. Sua estreia aconteceu no Teatro Ipanema, ao lado do inseparável
piano. Ainda em 79, emplaca duas canções suas nas rádios, e aos pés do sucesso
do primeiro LP, pela PolyGran, Bethânia dá a voz a “Gota de Sangue”, composição
de Ro Ro. Ela então ganha o título de “A Sensação do Ano”, pelo Jornal do
Brasil. Ela nunca negou sua preferência por mulheres, e faz disso um assunto
leve, como deve ser. Angela é uma artista de temperamento forte, o que torna
mais impactante cada vez que cala o silêncio com sua voz. Namorou Zizi Possi, e
chegou a ser acusada de agressão à cantora e então parceira, e a ela dedicou “Escândalo”. Do palco, Ro Ro diz: “puta merda, esqueci de
convidar o Edy Star”. Esse é mais um de seus amigos da cambada boa da música do
lado B, que pra mim significa a sigla de lado bom.
Mas
era Ney Matogrosso que dividiria o palco naqueles três dias de show em São
Paulo. Deu saudades daquele tempo, e voltamos a ver os dois amigos mirados pela
luz teatral e som do piano dedilhado pela própria Ro Ro. “Balada da Arrasada”,
composição que conta a irônica e translouca vida de uma amida, vem acompanhada
de “Não há Cabeça”, com Ney debruçado sobre o piano, fazendo-o de dueto, às
entradas de Ro Ro. Quando ela deixa o palco, ouve-se uma das mais belas vozes
da música, casada a um homem performático, ator da música. Ney cantou músicas
de seu último álbum, “Segredo”, de Herivelto Martins e Marino Pinto, “A Bela e
a Fera”, de Buarque e Edu Lobo, “Nada por Mim”, de Herbert Viana e Paula
Toller, e enfim “Beijo Bandido”, título deste último espetáculo, cravam a
impecável participação de Ney.
Ney
Matogrosso traz no nome suas origens, chegou ao estouro do mundo da música com
o grupo “Secos e Molhados”, onde vinha transfigurado e envolvendo seu corpo num
ritmo que só ele tem. Quando, então sozinho lançou o disco “Água do Céu –
Pássaro”, repercutiu, mesmo que tardiamente, tendo em conta seu evidente
talento, por toda a crítica brasileira. Ele chegou ao Rio de Janeiro e foi
trabalhar num teatro como assistente de iluminação. Naquela época havia apenas
um canhão, e era com isso que mirava-se os artistas no palco, e alguém tinha
que segurar aquela geringonça, este era Ney, que hoje desenha uma das mais
belas iluminações dos palcos musicais. Ele até vendeu peças de artesanato em
couro, feitas por ele, chegou a ingressar na aeronáutica, morou em São Paulo e
já na década de 2000 gravou seus dois explosivos e belas artes movimentadas por
notas nos álbuns “Batuque” e “Inclassificáveis”, dos quais tenho grande
admiração.
Ney
e Angela foram escurecendo palco o deixando mudinho após cantarem juntos “Amor
meu grande amor”, de Ana Terra e Ro Ro. Essa música é uma poesia cantada, é
visual e tácita, ao mesmo tempo sente-se, e com a ajuda de duas tão diferentes
vozes, e juntamente harmônicas, só se pode sair do teatro com vontade de
continuar amando o que verdadeiramente é música. Antes de despedir-se mesmo, Ro
Ro soltou a voz em “Malandragem”, de Cazuza e Frejat. Aplausos e mais aplausos,
nada mais para artistas completos. É essa a melhor forma de se agradecer.
Angela Maria e Cauby Peixoto
Uma
outra Angela fez brilhar o palco de um outro teatro, e é gostoso ouvir música
no teatro, sinto como se assistisse atos de óperas populares, belíssimas.
Angela Maria, toda de branco, não vou poupar elogios, vou até chamá-la de um
anjo da música. Ela parecia! Um anjo que fala:
“porra, colocou meu brinco já? “, ao receber ajuda para devolver à
orelha o brinco que caiu. Ela brilhava mesmo, nos agudos que lhe restam, e na
parceria do eterno amigo Cauby Peixoto, que foi cantar na gravação de seu novo
DVD.
Foi
num tom tranquilo, que Angela descobriu a voz, por trás das cortinas do Fecap,
em “O Portão”, letra de Roberto e Erasmo, que emana versos que intitulam seu
novo álbum, e a firmam neste atual cenário da música. Com os olhos brilhando, a
fálica e bela boca vermelha, “Maldito Coração”, e “Lábios de Mel”, de Waldir
Rocha, foram cantados por ela e pelo público, como se fosse antes, quando
Angela era a rainha da música, título que eu ainda lhe preservo, mas há quem
prefira “tchu tcha tchu tchu tchu tcha”. Não seria ela, se não cantasse Tom e
Dolores Duran, “Por Causa de Você”, música que me tira do silêncio, e lágrimas
dos olhos, ainda mais ao ver tal dama à nossa frente com 60 anos de carreira
mostrando seu amor pela música. Tem muita gente se dizendo músico, que está
evidente o curto caminho nessa brincadeira que eles chamam de “arte”, e que
infelizmente parece estar nas mãos da velha guarda da música.
Angela
Maria é da época de ouro, quando se cantava nas rádios e vivia-se da música
pelo imenso prazer. Era odiada nos programas de calouros, pelos outros
calouros, pois era ela quem sempre levava. Sua boca tremia às canções de fortes
agudos, e fazia-a solfejar como um sabiá de timbre alto. Em pensar que essa
mulher foi operária, tecelã. À Angela não bastou sonhar, teve de deixar de ser
Abelim Maria da Cunha, para Angela Maria, a Sapoti de Getúlio Vargas. Ângela
Maria era o nome que tinha nas rádios, para a família não descobrir quem era, e
Sapoti foi o fruto que inspirou Getúlio à sua doçura. Ela gravou mais de 114
discos, foi sabotada por assessores e empresários, sofreu com maridos, tentou
até suicídio. Essa gigante se meteu no cinema, cursou teatro e hoje é a referência
de grandes intérpretes brasileiros. Em 79 apaixonou-se por um rapaz de 18 anos,
com quem está casada até hoje, ele, é claro, mais velho do que era. Afinal, a
vida passa, a música não envelhece, mas a gente sim. Angela foi perdendo muito
de seu teor vocal, mas jamais deixou de ser o maior mito feminino da música, é
assim que eu a vejo. Dalva de Oliveira era sua rival, elas disputavam as fãs,
hoje não há quem não goste de Angela, e quem não a relacione com a amizade
eterna de Cauby, com quem gravou memoráveis sucessos.
Cauby
Peixoto foi considerado o Elvis Presley brasileiro, o chamado rei, Roberto
Carlos, o coroava na época em que Cauby assinava os grandes contratos e
destilava seu charme para o delírio das moças, e sua voz impecável e que
colocava a qualidade musical do Brasil no topo. Foi ele que gravou o primeiro
rock por aqui, levou nossa música para outros idiomas, como a “Maracangalha”,
de Caymmi, recebeu aos 25 anos de carreira presentes imortalizados em sua voz,
como “Cauby Cauby”, de Caetano,
“Bastidores”, de Buarque, “Oficina”, de Jobim, e “Brigas de Amor”, de Roberto e
Erasmo Carlos. Cauby levou ao mundo o que poucos músicos conseguiram levar, a
verdadeira composição brasileira. As moças corriam quando ele chegava às
cidades com seus shows. Minha vó conta suas insistências, em Cachoeira, na
Bahia, para o pai levá-la ao espetáculo que traria o homem dos cabelos
cuidados, os anéis que tanto brilhavam, e os famosos blazers que vestiam a voz
mais famosa das rádios. Ele chegava suntuoso, e por onde passava deixava
mulheres rasgadas, porém nunca assumiu relacionamentos, e denomina-se um homem
assexuado. Seu prazer está na música.
Angela
e Cauby encontraram-se outra vez no palco, me emocionaram. Ele errou, voltou,
bateu no ombro do violonista Ronaldo Rayol, e retomou a letra. Pareciam dois
meninos de volta, rindo e emocionados olhando e elogiando um ao outro. Cauby
surpreendeu Angela, e cantou a ela “Abandono”, depois juntos, “Brigas”, de Jair
Amorim e Evaldo Gouveia, “Carinhoso”, de Pixinguinha, “Se queres saber”, e uma
das mais completas canções do nosso folhetim musical, de Herivelto Martins,
“Ave Maria no Morro”. Angela ainda cantou “Gente Humilde”, de Chico Buarque, o
sucesso “Babalu”, com um tom mais brando, além de “As Pastorinhas”, “Bandeira
Branca”, “Cidade Maravilhosa” e tantas outras coisas que fecharam um espetáculo
triunfal. Muito bem produzido e dirigido. Piano, sax, violão, guitarra, flauta
e baixo. Uma voz imortal, e que se recusa a deixar uma das maiores intérpretes
que ainda escreve sua história num caderninho de partitura, amontoando sobre
todos aqueles outros que o mundo inteiro já ouviu.