O
espetáculo reestreou no último sábado (12), em São Paulo, na Sala Paschoal
Carlos Magno, do Teatro Sérgio Cardoso, trazendo ao público a oportunidade de
sentir a dança e a expressão, mediados pela intérprete Mariana Muniz. Em “2
Mundos” é possível encontrar o silêncio fundido ao som da música e poesia, e o
dialeto da Língua Brasileira de Sinais.
Mariana
Muniz recheia o palco com uma intensa movimentação corporal, vibrando o som em
seu próprio eixo, dependendo apenas da própria flexibilidade. O teatro físico
materializa-se no espetáculo em movimentos abstratos e de uma qualidade
sensorial belíssima. Mariana soletra o alfabeto em LIBRAS e vai permitindo que
o som penetre em seu corpo, a trilha é apropriada para envolver o público,
fazendo com que possamos sentir a vibração dos sintetizadores e batucadas. A
canção “Gostoso Demais”, de Nando Cordel e Dominguinhos, é interpretada por
Mariana, tanto em LIBRAS, quanto pausadamente em voz, poetizando ainda mais a
música. Toda a didática exposta na Linguagem de Sinais, torna o lirismo do
espetáculo ainda mais ritmicamente belo.
O
espectro de “2 Mundos” surge do corpo de Mariana Muniz, figuras são desenhadas
através de seus movimentos, e o silêncio é tracejado por palavras trazidas por
gestos. A fala ainda é insuficiente para que o ser humano possa se expressar, e
para os surdos e mudos a maneira mais rápida de comunicação é o gestual. São as
mãos que os permitem falar, e que os tornam ainda mais expressivamente
sensíveis. A atriz emite sons, exprime a tentativa de calar o silêncio com sua
voz, e deixa claro que o movimento pode tornar o silêncio ainda mais
apropriado. Entrar numa sala de teatro, após atravessar a cidade de São Paulo
cheia de seus barulhos e ruídos, e ouvir o silêncio agregar-se ao som que nos
vibra mentalmente e muscularmente, é, no mínimo, necessário e especial. Mariana
lembra-me muito a intérprete Maria Bethânia, sua maneira de articular, de
gesticular, de poetizar, além da forma costumeira de olhar do palco, e enquanto
ajeita-se em cena, e fora dela. E isso é muito grande, não quero duplicar sua
identidade, e sim enaltecê-la.
A
deficiência na audição e na fala não estão necessariamente ligadas, muitos dos
mudos não exercitaram a voz, e por esse motivo têm a perda da emissão de sons.
Esse é um campo que deve ser explorado por um fonoaudiólogo, para identificar
as possibilidades. Na Idade Antiga os surdos e mudos eram, em muitos casos,
tratados como dementes, e às vezes até venerados como favoritos dos deuses, o
que era mais ocorrente na Pérsia e no Egito. Na época renascentista, apóstolos
preocuparam-se em integrá-los à sociedade. Em meados no século XVI, o matemático e médico
italiano Jerônimo Cardan foi pioneiro em criar possibilidades práticas de
educar os cegos e surdos-mudos. Cardan também foi requisitado como médico pelos
reis Cristiano III, da Dinamarca, e Eduardo VI, da Inglaterra, e como
matemático desenvolveu a fórmula para resolução das equações de terceiro grau.
No século XVIII, o abade francês, Charles Michel L’Epée fundou o primeiro
colégio para surdos-mudos, e ensinava os alunos por meio de mímicas, utilizadas
durante anos, que descreviam letra por letra do alfabeto. No ano de 1856 o
sistema de sinais, já mais aperfeiçoado, chegou ao Brasil junto ao conde
francês Huet, que era surdo. Esse sistema foi universalizado e tornou possível
que pessoas de nacionalidades diferentes se comunicassem, por indicarem letras,
além disso, os sinais também representavam os desejos das pessoas. O médico
americano Orin Cornett, em 1966, associou a linguagem de sinais à leitura
labial, melhorando o entendimento. Hoje, cada país tem sua própria linguagem de
sinais, porém todas derivam do método francês e alteram apenas de acordo com
variações ortográficas regionais. Aqui no Brasil é conhecida como LIBRAS. O
pianista Ludwig van Beethoven, foi um dos artistas mais sofridos da história,
além de viver problemas conjugais e familiares, de perder muito cedo os irmãos,
perdeu a audição e mesmo assim compôs famosas e belíssimas sinfonias. O pintor
francês Goya, portador de uma doença então desconhecida, ficou parcialmente
paralítico e cego, e totalmente surdo, enlouquecendo por conta disso, ainda
pintou espetaculares quadros, muito valiosos. A sensibilidade é o melhor ângulo
e a incrível forma de olhar, seja de um surdo, mudo, ou cego.
Mariana
Muniz demonstra o emocionante ato de comunicar-se em LIBRAS, falo em ser
emocionante, pela exclusão que ainda há deste assunto por aqui. É muito raro
encontrar espetáculos realizados com tanta sensibilidade e preocupação em
abranger a um amplo público, que não fica restrito apenas aos surdos-mudos,
pois há sons e falas também. É raro ver o teatro especular as diferentes formas
de linguagem, e na dança isso fica espetacular e harmônico. A descrição de
peças em palavras ainda é muito complicada, pois ler muitas dessas palavras,
para os surdos é algo muito difícil, a muitos não é possível ouvir a sonoridade
das sílabas, portanto rígidas de interpretar. Na cidade de Tel Aviv, em Israel,
há um grupo formado por atores portadores de deficiência auditiva e visual, o
Nalaga’at, que apresenta-se em diversos países. Este mesmo grupo, em 2007
inaugurou um café com garçons surdos e um restaurante com servidores cegos.
Isso é um exemplo para muitos países, principalmente ao Brasil, que ainda
depende de ONGs para iniciativas sociais, que ainda sim são insuficientes.
O
espetáculo “2 Mundos” é um resumo do sentimento de um surdo e mudo, é o grito
registrado em gestos, é um ato sensorial de transformar um palco em expressão.
A iluminação, de Ricardo Bueno, restringe-se em três cores, e marca muito bem o
palco, com efeitos pontuais. A direção de Cláudio Gimenez é uma grande surpresa
de cenas, pois é difícil prever qual pernada, qual braçada, qual emissão de som
virá suceder a outra. A supervisão geral é de Eduardo Tolentino de Araújo, que
encontra no palco um exemplo de aproveitamento e visão de roteiro. O som, que é
uma das perfeitas assinaturas do espetáculo é obra de Ricardo Severo. O
figurino versátil é de Tânia Marcondes. Carlos Avelino de Arruda Sampaio fez a
assessoria técnica em LIBRAS, enquanto a Cria da Casa cuidou da produção.
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