terça-feira, 29 de maio de 2012

Angela Ro Ro e Ney Matogrosso, Angela Maria e Cauby Peixoto fazem duplas inesquecíveis no palco


Foi difícil parar quieto neste final de semana em São Paulo, entre um dia e outro, de agradáveis noites, o Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, recebia Angela Ro Ro e Ney Matogrosso num encontro orgástico. No Teatro Fecap, o mais nobre dueto da música brasileira encontrava-se para relembrar 60 anos de sucesso, Angela Maria e Cauby Peixoto eram aqueles jovens seresteiros outra vez.

Angela Ro Ro e Ney Matogrosso 

Quando tudo parecia muito calmo, um furacão inquieto tomou conta do palco do Teatro Paulo Autran, era Angela com seu habitual preto e os tênis que lhe permitem percorrer o espaço todo. Assumidamente de cabelos brancos, sua idade nem parece chegar perto da realidade, a realidade dela é uma outra bem similar daquela disposição da época do grupinho com Cazuza pelas ruas do Rio de Janeiro, agora um pouco mais branda, também, sem Cazuza, mas com a doce presença de Ney Matogrosso, uma emulsão de voz e deleite numa coisa chamada canção.

Para Angela, nada mais que um piano eletrônico com todas as bases prontas e sua irreverência contavam o elenco do show, logicamente que Ney entraria depois, como seu convidado. Ela é esfuziante, conta histórias, faz seu público todo cair às gargalhadas, e mais do que isso distribuí aos cantos do teatro uma voz que ainda não perdeu seus graves e a rouquidão de uma tênue perfeição. Angela sapecou sucessos que foram cantados juntos a plateia, “Tola foi você”, “Came e Case”, e “Fogueira”, todas de sua autoria, esta última foi gravada por Maria Bethânia. Ela também mandou “Ne me quitte pas”, de Brel, e mostrou que sua voz é a mesma, e empunha uma masculinidade afeminada, típica de seu jeitão pitoresco de ser ela própria, e que convenhamos, é incrível. É claro que senti falta de uma banda enchendo aquele palco de notas, não gosto muito de bases prontas. De Caetano Veloso, ela cantou “Escândalo”, e “Compasso”, de Mac Cord e Ro Ro.

Do outro lado do palco um piano dava o tom de sua história, desde os cinco anos de idade Ro Ro tira notas de um daqueles. Enquanto o regime militar comia solto no Brasil, ela estava em Londres, onde trabalhava em restaurantes e aproveitada para cantar em boates. O sucesso começou mesmo na década de 70, quando ela volta ao Rio e gravou seu primeiro disco, depois de dar canjas em boates cariocas. Sua estreia aconteceu no Teatro Ipanema, ao lado do inseparável piano. Ainda em 79, emplaca duas canções suas nas rádios, e aos pés do sucesso do primeiro LP, pela PolyGran, Bethânia dá a voz a “Gota de Sangue”, composição de Ro Ro. Ela então ganha o título de “A Sensação do Ano”, pelo Jornal do Brasil. Ela nunca negou sua preferência por mulheres, e faz disso um assunto leve, como deve ser. Angela é uma artista de temperamento forte, o que torna mais impactante cada vez que cala o silêncio com sua voz. Namorou Zizi Possi, e chegou a ser acusada de agressão à cantora e então parceira, e a ela dedicou “Escândalo”.  Do palco, Ro Ro diz: “puta merda, esqueci de convidar o Edy Star”. Esse é mais um de seus amigos da cambada boa da música do lado B, que pra mim significa a sigla de lado bom.

Mas era Ney Matogrosso que dividiria o palco naqueles três dias de show em São Paulo. Deu saudades daquele tempo, e voltamos a ver os dois amigos mirados pela luz teatral e som do piano dedilhado pela própria Ro Ro. “Balada da Arrasada”, composição que conta a irônica e translouca vida de uma amida, vem acompanhada de “Não há Cabeça”, com Ney debruçado sobre o piano, fazendo-o de dueto, às entradas de Ro Ro. Quando ela deixa o palco, ouve-se uma das mais belas vozes da música, casada a um homem performático, ator da música. Ney cantou músicas de seu último álbum, “Segredo”, de Herivelto Martins e Marino Pinto, “A Bela e a Fera”, de Buarque e Edu Lobo, “Nada por Mim”, de Herbert Viana e Paula Toller, e enfim “Beijo Bandido”, título deste último espetáculo, cravam a impecável participação de Ney.

Ney Matogrosso traz no nome suas origens, chegou ao estouro do mundo da música com o grupo “Secos e Molhados”, onde vinha transfigurado e envolvendo seu corpo num ritmo que só ele tem. Quando, então sozinho lançou o disco “Água do Céu – Pássaro”, repercutiu, mesmo que tardiamente, tendo em conta seu evidente talento, por toda a crítica brasileira. Ele chegou ao Rio de Janeiro e foi trabalhar num teatro como assistente de iluminação. Naquela época havia apenas um canhão, e era com isso que mirava-se os artistas no palco, e alguém tinha que segurar aquela geringonça, este era Ney, que hoje desenha uma das mais belas iluminações dos palcos musicais. Ele até vendeu peças de artesanato em couro, feitas por ele, chegou a ingressar na aeronáutica, morou em São Paulo e já na década de 2000 gravou seus dois explosivos e belas artes movimentadas por notas nos álbuns “Batuque” e “Inclassificáveis”, dos quais tenho grande admiração.

Ney e Angela foram escurecendo palco o deixando mudinho após cantarem juntos “Amor meu grande amor”, de Ana Terra e Ro Ro. Essa música é uma poesia cantada, é visual e tácita, ao mesmo tempo sente-se, e com a ajuda de duas tão diferentes vozes, e juntamente harmônicas, só se pode sair do teatro com vontade de continuar amando o que verdadeiramente é música. Antes de despedir-se mesmo, Ro Ro soltou a voz em “Malandragem”, de Cazuza e Frejat. Aplausos e mais aplausos, nada mais para artistas completos. É essa a melhor forma de se agradecer.

Angela Maria e Cauby Peixoto 

Uma outra Angela fez brilhar o palco de um outro teatro, e é gostoso ouvir música no teatro, sinto como se assistisse atos de óperas populares, belíssimas. Angela Maria, toda de branco, não vou poupar elogios, vou até chamá-la de um anjo da música. Ela parecia! Um anjo que fala:  “porra, colocou meu brinco já? “, ao receber ajuda para devolver à orelha o brinco que caiu. Ela brilhava mesmo, nos agudos que lhe restam, e na parceria do eterno amigo Cauby Peixoto, que foi cantar na gravação de seu novo DVD.

Foi num tom tranquilo, que Angela descobriu a voz, por trás das cortinas do Fecap, em “O Portão”, letra de Roberto e Erasmo, que emana versos que intitulam seu novo álbum, e a firmam neste atual cenário da música. Com os olhos brilhando, a fálica e bela boca vermelha, “Maldito Coração”, e “Lábios de Mel”, de Waldir Rocha, foram cantados por ela e pelo público, como se fosse antes, quando Angela era a rainha da música, título que eu ainda lhe preservo, mas há quem prefira “tchu tcha tchu tchu tchu tcha”. Não seria ela, se não cantasse Tom e Dolores Duran, “Por Causa de Você”, música que me tira do silêncio, e lágrimas dos olhos, ainda mais ao ver tal dama à nossa frente com 60 anos de carreira mostrando seu amor pela música. Tem muita gente se dizendo músico, que está evidente o curto caminho nessa brincadeira que eles chamam de “arte”, e que infelizmente parece estar nas mãos da velha guarda da música.

Angela Maria é da época de ouro, quando se cantava nas rádios e vivia-se da música pelo imenso prazer. Era odiada nos programas de calouros, pelos outros calouros, pois era ela quem sempre levava. Sua boca tremia às canções de fortes agudos, e fazia-a solfejar como um sabiá de timbre alto. Em pensar que essa mulher foi operária, tecelã. À Angela não bastou sonhar, teve de deixar de ser Abelim Maria da Cunha, para Angela Maria, a Sapoti de Getúlio Vargas. Ângela Maria era o nome que tinha nas rádios, para a família não descobrir quem era, e Sapoti foi o fruto que inspirou Getúlio à sua doçura. Ela gravou mais de 114 discos, foi sabotada por assessores e empresários, sofreu com maridos, tentou até suicídio. Essa gigante se meteu no cinema, cursou teatro e hoje é a referência de grandes intérpretes brasileiros. Em 79 apaixonou-se por um rapaz de 18 anos, com quem está casada até hoje, ele, é claro, mais velho do que era. Afinal, a vida passa, a música não envelhece, mas a gente sim. Angela foi perdendo muito de seu teor vocal, mas jamais deixou de ser o maior mito feminino da música, é assim que eu a vejo. Dalva de Oliveira era sua rival, elas disputavam as fãs, hoje não há quem não goste de Angela, e quem não a relacione com a amizade eterna de Cauby, com quem gravou memoráveis sucessos.

Cauby Peixoto foi considerado o Elvis Presley brasileiro, o chamado rei, Roberto Carlos, o coroava na época em que Cauby assinava os grandes contratos e destilava seu charme para o delírio das moças, e sua voz impecável e que colocava a qualidade musical do Brasil no topo. Foi ele que gravou o primeiro rock por aqui, levou nossa música para outros idiomas, como a “Maracangalha”, de Caymmi, recebeu aos 25 anos de carreira presentes imortalizados em sua voz, como “Cauby Cauby”,  de Caetano, “Bastidores”, de Buarque, “Oficina”, de Jobim, e “Brigas de Amor”, de Roberto e Erasmo Carlos. Cauby levou ao mundo o que poucos músicos conseguiram levar, a verdadeira composição brasileira. As moças corriam quando ele chegava às cidades com seus shows. Minha vó conta suas insistências, em Cachoeira, na Bahia, para o pai levá-la ao espetáculo que traria o homem dos cabelos cuidados, os anéis que tanto brilhavam, e os famosos blazers que vestiam a voz mais famosa das rádios. Ele chegava suntuoso, e por onde passava deixava mulheres rasgadas, porém nunca assumiu relacionamentos, e denomina-se um homem assexuado. Seu prazer está na música.


Angela e Cauby encontraram-se outra vez no palco, me emocionaram. Ele errou, voltou, bateu no ombro do violonista Ronaldo Rayol, e retomou a letra. Pareciam dois meninos de volta, rindo e emocionados olhando e elogiando um ao outro. Cauby surpreendeu Angela, e cantou a ela “Abandono”, depois juntos, “Brigas”, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia, “Carinhoso”, de Pixinguinha, “Se queres saber”, e uma das mais completas canções do nosso folhetim musical, de Herivelto Martins, “Ave Maria no Morro”. Angela ainda cantou “Gente Humilde”, de Chico Buarque, o sucesso “Babalu”, com um tom mais brando, além de “As Pastorinhas”, “Bandeira Branca”, “Cidade Maravilhosa” e tantas outras coisas que fecharam um espetáculo triunfal. Muito bem produzido e dirigido. Piano, sax, violão, guitarra, flauta e baixo. Uma voz imortal, e que se recusa a deixar uma das maiores intérpretes que ainda escreve sua história num caderninho de partitura, amontoando sobre todos aqueles outros que o mundo inteiro já ouviu.

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