Nana
Caymmi apresentou-se no último sábado no HSBC Brasil em São Paulo e disse que
não consegue deixar a música. Faz três anos que a intérprete diz que vai parar
de cantar, pela exaustão das viagens e montagens dos shows, mas sempre que sobe
ao palco e é tomada pela energia da música, Nana volta atrás. Seu timbre
espetacular, herdado do pai é uma raridade entre as mulheres da MPB. Seu
repertório no show em São Paulo trouxe de volta boleros e sucessos
imortalizados em sua voz, aquecidos pelos inseparáveis goles de uísque.
O
show apresentado relembra os impecáveis álbuns de Nana, que já sapecou logo na
entrada à emoção do público canções como “Por Causa de Você”, de Tom Jobim e
Dolores Duran, e “Só em Teus Braços”, também de Jobim. Brilhando em tom preto,
com uma orquídea rosada presa aos cabelos, o batom vermelho tracejando o rosto
branco, Nana ficou ao lado do piano, que acompanhava um dos timbres mais belos
da música brasileira. Foi assim que matei as saudades dela, à primeira vista no
palco. Irreverente e com a língua afiada ela batia papo com o público no
intervalo das canções, paparicada pela ovação dos ouvintes, Nana fez sua voz
valsear lindamente pelo palco, com um certeiro arranjo, batido em boleros e
dedilhados por uma bela bossa. Ela nunca preocupou-se com cenário, também com
sua exuberância e imponência no palco, a própria sempre declarou-se uma obra de
arte que substituí qualquer trabalho cenográfico, no dia, a iluminação tomou
conta do espetáculo, que por vezes era regulada por sinais da própria cantora.
Nana
parece que veio ao mundo sob encomenda, filha de Stella Maria e Dorival Caymmi,
nasceu aos braços do Rio de Janeiro, na década de 40. Foi registrada como
Dinahir Tostes Caymmi, e batizada pelo mundo como Nana Caymmi. Sua herança
genética apontou no timbre contralto de Nana o evidente sucesso. Ainda criança
adormecia com o pai cantando “Acalanto”, que fora gravado por ela
posteriormente. Nos anos 60, na explosão de grandes nomes da música, Nana
participa do LP de seu pai, cantando a canção que ouviu durante a infância
toda, para ninar. Na TV Tupi estreou
apresentando-se no programa “Sucessos Musicais”, e em seguida, ao lado de Dori,
seu irmão, no programa “A Canção de Nana”, apresentado por ela. Mas a história
de Nana Caymmi no Brasil estava com os dias contados, quando casou-se com o pai
de suas duas filhas, Stella e Denise, o médico Gilberto José, com quem morou
durante muitos anos em Caracas. Ela vinha ao Brasil uma vez por ano, quando
podia visitar os pais. Dorival Caymmi sempre foi muito machista, e cravou
muitas brigas com a filha, que desde muito jovem mostrava-se sem papas na
língua.
Nana
gravou seus discos e foi despontando na música, separou-se do marido e voltou
ao Brasil. Enquanto morava fora, recebia os discos dos amigos, perdia o
espetacular da Bossa Nova e movimentos que engrossavam a beleza da nossa
musicalidade, e isso foi determinante para seu retorno, desembarcando aos
braços do Cristo Redentor, dessa vez grávida de um menino. Este ganharia o nome
de um santo, já que vinha em junho, João, com o primeiro nome do pai, João
Gilberto Caymmi, que seria então seu eterno companheiro, após mais dois
casamentos. Um deles com o cantor Gilberto Gil. O filho mais novo infelizmente
envolveu-se com drogas e bebidas, sofreu um acidente de carro e entrou em coma.
João Gilberto passou a ter comportamento mental regressivo e a necessitar da
reeducação da mãe e de sua incansável companhia. Depois deste episódio, de
inúmeras cirurgias e acompanhamentos médicos, João voltou a usar drogas e foi
preso por algumas vezes. Nana, por diversas vezes passou horas e horas sentada
no banco da delegacia, tendo em mãos laudos médicos e um lanche para se
sustentar, até a liberação do filho.
Nana
Caymmi, não tinha apenas o escudo forte de seu pai, mas trazia a genialidade
musical de gravar sucessos, como do jovem Djavan, e dos grandes revolucionários
da musica e dos ritmos brasileiros. Venceu importantes prêmios e apresentou-se
ao lado dos amigos, Gil, Toquinho, Caetano e Maria Bethânia, em programas da
extinta Excelsior. No jornal Correio da Manhã, de 23 de fevereiro, Nana foi
citada no poema “A Festa (Recapitulação)”, por Carlos Drummond de Andrade, e
anos depois, no “Jornal do Brasil”, Tárik de Souza a intitula como a “Nina
Simone brasileira”, enquanto Caetano Veloso considerava “Medo de Amar”, de
Vinícius de Moraes, também cantada no show de São Paulo, como uma das
interpretações mais expressivas da música brasileira, na voz de Nana. E
realmente é desta forma que sua voz nos atinge enquanto essa canção passa por
seu timbre.
Em
1980 Nana recebe grandes amigos num encontro delicioso no carioca Teatro
Villa-Lobos, às segundas-feiras, ao seu lado cantaram Isaurinha Garcia, Rosinha
de Valença, Cáudio Nucci, com quem foi casada, Zezé Mota, Sueli Costa, Fátima
Guedes, Jards Macalé e outros, e continuou apresentando-se em palcos menores,
aproximando-se sempre do público. Se eu fosse recontar tudo que Nana gravou e
participou, precisaríamos de várias colunas. Foram palcos e mais palcos em
diversos países, festivais e inúmeros temas de novelas. Uma das coisas mais
lindas que já vi na música foi quando Dori, Danilo e Nana Caymmi, o trio
musical, filho de Dorival e Stella, dedicaram ao pai um show em homenagem aos seus
90 anos. Músicas da mais bela composição, como “Acontece que eu sou baiano”, “A
vizinha do lado”, “Severo do Pão”, “Vatapá”, “O Samba da minha Terra”, “Dois de
Fevereiro”, “Lá vem a baiana”, “Saudade da Bahia”, “Requebre que eu dou um
doce”, “Vestido de Bolero”, e ainda outras emocionaram Dorival, que ouvia da
plateia fazendo coreografias, enquanto os olhos brilhavam. E é assim que ouvi e
vi Nana neste último sábado, em São Paulo, com os meus olhos brilhando e o
corpo penetrado de canção.
Um
gole de uísque e a música vinha ainda mais bela, “Sem Você”, de Vinícius de
Moraes e “Só Louco”, de Dorival são picos de emoção deste dois compositores,
cintilados na voz de Nana. “João Valentão”, letra também de seu pai, saiu como
um furacão de emoções, essa música é de uma robustez e ao mesmo instante de uma
tremenda sensibilidade, que nos faz ouvir calado, mesmo sabendo a letra.
“Marina” é uma das composições de Caymmi que mais me extasiam ao ouvir, pois é
uma letra visual, e sem dúvidas, uma das mais belas artes da música brasileira,
e Nana a cantou no HSBC Brasil, assim como agraciou o bolero com “Solamente uma
vez”, de Agustin Lara”, e dentre outros sucessos, “Não se Esqueça de Mim”, de
Roberto e Erasmo, que calça belamente à sua voz, muito melhor do que na deles,
e “Resposta ao Tempo” de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, amavelmente apreciada
pelo público.
Enquanto
canta, seus olhos se fecham, os punhos serram-se, o corpo dança em seu próprio
eixo. A orquídea parece ganhar vida sob a força dessa jovem de 71 anos, que se
deixar o palco, esmaece uma sensível faixa da música popular brasileira. Nana é
como um rádio para os amigos, Miúcha e Bethânia vivem pedindo canções a ela,
quando estão juntas. Nana é como um ser mitológico da música, em que é possível
tornar tácito, quando entende-se a beleza de cada composição, e isso é fácil
quando ouve-se interpretada por ela. Nana é um barco só no oceano, suficiente
para fazer o mar cantar às suas batidas no casco. Ela reclama, e eu assino embaixo cada palavra
sua, a música anda burra, a atualidade têm apedrejado o sentido da
interpretação e da composição. Enquanto ela prende à parede um disco de ouro,
“quilos e quilos de merda” têm diamante e outros acima. Para Nana, a obrigação
de cantar é um pé no saco, o vai e vem entre ponte aérea e viagens longas, no
aperto das poltronas de companhias aéreas e o faz e desfaz de malas é um
trabalho que a idade lhe puxa pra baixo.
Nana
pretende realizar um show em homenagem aos 100 anos do pai, que faleceu no
mesmo ano que sua mãe, e lhe trouxe imensa tristeza, em 2008. Composições
guardadas de Dorival, devem ser retiradas da gaveta por ela, assim como o lado
B de Tom Jobim, que o público poderá apreciar com a mesma sutileza e carisma
que ouvem em seus shows. O HSBC Brasil receberá ainda neste mês a adocicada voz
de Gal Costa, e a brasilidade roqueira de Zélia Duncan e Dinho Ouro Preto, o
samba de Mart’nália e o pop de Lulu Santos. Foi bom matar as saudades de Nana,
e nós queremos ainda mais!
Fotos: Taiz During
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