sábado, 10 de agosto de 2013

“Uma Vida no Teatro” traduz Francisco Cuoco


“Uma Vida no Teatro” é o jargão mais típico e fiel a um ator. Um ator, que permeia sua carreira na arena, não poderia ter um lar mais assíduo do que a arena. É nela que o ator encontra seus leões, crava suas espadas e ajoelha-se na terra. É nessa arena que aquele que dobra-se não a abandona, só na morte. É lindo ver uma peça que fala das peças, um ator, ou melhor, dois atores, que falam um do outro. “Uma Vida no Teatro”, dirigido por Alexandre Reinecke, encharcando texto na boca de Francisco Cuoco e Ângelo Paes Leme.

Um ator tem um machado siamês na cabeça, que divide-o a todo instante, jogando, por vezes, na sarjeta a própria vida e permitindo-o viver apenas o outro. O ator é o outro! Pouco é ele mesmo. O ator é reverenciado por ser o outro. É um médium, que expulsa seu espírito e engorda-se de um outro, aquele que está escrito num papel. Num calhamaço de papéis.

Essa interpretação escorre da graça e do impecável humor de David Mamet, na tradução de Clara Carvalho, sobre o texto em questão. Cuoco e Leme são eles, e não são. Tal qual dois atores vivendo dois atores. Um ator interpreta para ser interpretado.

Eles vivem diversos espetáculos dentro de um mesmo, manipulam a luz do mago Paulo Cesar Medeiros como se comandassem as próprias línguas. Movimentam em tirar e colocar os figurinos de Fabio Namatame, o dono da alfaiataria teatral, como se permitissem que o tempo passasse ligeiramente por seus corpos. Da-se a impressão imediata de que uma vida passa por aquele palco.

O teatro é a expectativa latente de um público. É a transição do homem para a arte. É o movimento das letras presas no calhamaço de papéis, que chamamos de script. O teatro é Cuoco e a ranhura de sua fala, o resquício de sua rouquidão, prova de muitas falas na arena. Prova de muita areia hasteada por leões.

O teatro é ainda o gozo do diretor e o beijo entre Deus e o Diabo observado pelo autor. O teatro é o ator transando com ele mesmo, tocando-se pela barra da cortina e pelo linóleo preso nos tacos do palco.

“Uma Vida no Teatro” trata do movimento entre vida real e a realidade do teatro, e sua irrealidade também. A astúcia e a prepotência de um ator velho, sua solidão embriagada pelo passado e a passagem de seu ofício ao ator jovem, cheio de disposição e olhar. O Ângelo permite ao Cuoco um brilho além daqueles de novela, o Ângelo faz a corte, faz o papel do ator que sobrevive de comer letras. O ator é um engolidor de lâminas e é um sobrevivente dessas lâminas. O Ângelo Paes Leme tem brilho nos olhos, tem vida, vigor, deixa o palco sem solidão.

Francisco Cuoco dividiu a vida das telenovelas com a vida do teatro, sobe ao palco como se fosse o côncavo e o convexo do próprio ofício. Cuoco é muito maior do que o próprio ofício. É um ator que vaza pela profissão, que encolhe o palco em sua grandeza. Cuoco faz a multidão de seu calhamaço. Ele é o calhamaço de personagens. Cuoco é uma versão quase feminina de Fernanda Montenegro. É a versão masculina do teatro. É a antena sem ruído da TV.

O texto às vezes rasteja num conflito interminável e repetitivo, sem a explanação da atualidade teatral, nem goza do campo vasto dessa arte. Com isso, a direção fica num relento, no gesso do texto. Mas, Cuoco grita pra fora do texto, dá ritmo ao que de vez em quando perde o ritmo.

Os papéis são dirigidos por Reinecke com a gentileza e o rigor de quem movimenta peças de um xadrez. Sem cheque, apenas com a esperança de que o público redesenhe jogadas em suas mentes. Cuoco e Leme, e a aventura de Reinecke tornam a brincadeira séria, quando deixam ao público a cena final. O público é e sempre será a cena final de qualquer espetáculo.

O espetáculo é lindo, tem ritmo e engraçado. A produção é da Ricca Produções, junto a realização da Reinecke Produções Culturais.

“Uma Vida no Teatro” fica em cartaz até o mês de Setembro em São Paulo, no Teatro Vivo. Sextas às 21h30, sábado às 21h e domingo às 18h. Os ingressos custam R$ 50,00 para sexta e domingo e R$ 60,00 para os sábados. O teatro é adaptado para deficientes e a peça faz parte do projeto Vivo em Cena, o qual conheci e dou grande valor. 

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