“Uma
Vida no Teatro” é o jargão mais típico e fiel a um ator. Um ator, que permeia
sua carreira na arena, não poderia ter um lar mais assíduo do que a arena. É
nela que o ator encontra seus leões, crava suas espadas e ajoelha-se na terra.
É nessa arena que aquele que dobra-se não a abandona, só na morte. É lindo ver
uma peça que fala das peças, um ator, ou melhor, dois atores, que falam um do
outro. “Uma Vida no Teatro”, dirigido por Alexandre Reinecke, encharcando texto
na boca de Francisco Cuoco e Ângelo Paes Leme.
Um
ator tem um machado siamês na cabeça, que divide-o a todo instante, jogando,
por vezes, na sarjeta a própria vida e permitindo-o viver apenas o outro. O
ator é o outro! Pouco é ele mesmo. O ator é reverenciado por ser o outro. É um
médium, que expulsa seu espírito e engorda-se de um outro, aquele que está
escrito num papel. Num calhamaço de papéis.
Essa
interpretação escorre da graça e do impecável humor de David Mamet, na tradução
de Clara Carvalho, sobre o texto em questão. Cuoco e Leme são eles, e não são.
Tal qual dois atores vivendo dois atores. Um ator interpreta para ser
interpretado.
Eles
vivem diversos espetáculos dentro de um mesmo, manipulam a luz do mago Paulo
Cesar Medeiros como se comandassem as próprias línguas. Movimentam em tirar e
colocar os figurinos de Fabio Namatame, o dono da alfaiataria teatral, como se
permitissem que o tempo passasse ligeiramente por seus corpos. Da-se a
impressão imediata de que uma vida passa por aquele palco.
O
teatro é a expectativa latente de um público. É a transição do homem para a
arte. É o movimento das letras presas no calhamaço de papéis, que chamamos de
script. O teatro é Cuoco e a ranhura de sua fala, o resquício de sua rouquidão,
prova de muitas falas na arena. Prova de muita areia hasteada por leões.
O
teatro é ainda o gozo do diretor e o beijo entre Deus e o Diabo observado pelo
autor. O teatro é o ator transando com ele mesmo, tocando-se pela barra da
cortina e pelo linóleo preso nos tacos do palco.
“Uma
Vida no Teatro” trata do movimento entre vida real e a realidade do teatro, e
sua irrealidade também. A astúcia e a prepotência de um ator velho, sua solidão
embriagada pelo passado e a passagem de seu ofício ao ator jovem, cheio de
disposição e olhar. O Ângelo permite ao Cuoco um brilho além daqueles de
novela, o Ângelo faz a corte, faz o papel do ator que sobrevive de comer
letras. O ator é um engolidor de lâminas e é um sobrevivente dessas lâminas. O
Ângelo Paes Leme tem brilho nos olhos, tem vida, vigor, deixa o palco sem
solidão.
Francisco
Cuoco dividiu a vida das telenovelas com a vida do teatro, sobe ao palco como
se fosse o côncavo e o convexo do próprio ofício. Cuoco é muito maior do que o
próprio ofício. É um ator que vaza pela profissão, que encolhe o palco em sua
grandeza. Cuoco faz a multidão de seu calhamaço. Ele é o calhamaço de
personagens. Cuoco é uma versão quase feminina de Fernanda Montenegro. É a
versão masculina do teatro. É a antena sem ruído da TV.
O
texto às vezes rasteja num conflito interminável e repetitivo, sem a explanação
da atualidade teatral, nem goza do campo vasto dessa arte. Com isso, a direção
fica num relento, no gesso do texto. Mas, Cuoco grita pra fora do texto, dá
ritmo ao que de vez em quando perde o ritmo.
Os
papéis são dirigidos por Reinecke com a gentileza e o rigor de quem movimenta
peças de um xadrez. Sem cheque, apenas com a esperança de que o público
redesenhe jogadas em suas mentes. Cuoco e Leme, e a aventura de Reinecke tornam
a brincadeira séria, quando deixam ao público a cena final. O público é e
sempre será a cena final de qualquer espetáculo.
O
espetáculo é lindo, tem ritmo e engraçado. A produção é da Ricca Produções,
junto a realização da Reinecke Produções Culturais.
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