Feito uma enxurrada de vento no meio do sertão, como quem lasca à foice o mato seco e os galhos retorcidos apoiados na terra rachada que resvala o sol vermelho, Elba Ramalho risca nos palcos da cidade a dor, o choro, a paixão e a festa. Como quem traz nas costas um grupo de cangaceiros afiados, com sede de acorrentar o tempo, solavancos na madeira do palco açoitados pelo couro das sandálias igualavam-se ao som de um xaxado. Sanfona, marimba, viola nordestina, percussão, violino, flautas e o celo bateram asas na firmeza e delicadeza vocal de Elba. O nordeste fez folia em peso no Theatro NET SP, palco em que a cantora comemora seus 35 anos de carreira, no projeto "Cordas, Gonzaga e Afins".
Como quem suspirava a quentura desértica de onde respiram os cactos, Elba solfejava feito um anjo do sertão as orações poéticas de Luiz Gonzaga. Feito a célula mater de suas composições, ela regava a terra seca de onde a música vinha capengando e sem flores. Numa representatividade cênica delirante Elba vai de Ave Maria à castigada romântica. Derrama lágrimas com a voz e berros com os olhos! Fez do palco o quintal de um menino explorador e violentado pelo cárcere do silêncio que permeia as cabeças mortas pelos estábulos abertos dos recôncavos.
Nenhum elogio faria jus ao sublime comparativo celeste ocasionado pelo choque sinestésico que Elba nos causa com sua inquietante presença. Feito beijo no asfalto de verão, canção por canção assava os corações de cada um de nós. Desfiando o linho de suas roupas, a cor de cada interpretação ia deitando-se pelos pedaços de letras deixados pelas cabeças esguias de gigantes compositores, deu-lhe a luz que ainda não havia penetrado na canção de Gilberto Gil, "Domingo no Parque", entoada em uma versão esplendorosa. Peitando a juventude, Elba fez-se criança ao rolar por baixo das bandeirolas de São João e desafiou o tempo, que na seca nunca deixa de rogar pelo santo das festas. Ora, é ele quem tem de garantir o milho de Junho!
O grupo Sagrama orquestrava todo júbilo da poesia nordestina, ia fazendo um cenário braçal e de sopros em que Elba deitava o violento timbre. Sagrama recitou nos instrumentos um jantar de letras e notas servido, em outras épocas, apenas aos deuses.
Do incansável esforço de tornar gigante o que já é impávido, o quarteto de cordas Encore destinou às linhas de violinos a costura de um ritmo versátil. A forrozeira, a seresta e o mocambo cheio de som que vem desse tão falado sertão de "Mestre Lua" e Dominguinhos, ganhou uma versão enfeitada de bom gosto. Saber fazer música é gozar e quase morrer de tão bom! O baterista Tostão Queiroga e os sanfoneiros Beto Hortis e Marcelo Caldi completam as veredas desse sertão molhado.
Interpretando as poesias de Newton Moreno, Elba ia santificando a palavra e construindo à saliva um altar sob a projeção madura de sua voz. Palavras derramadas com a dramaticidade de um gigante astro. Elba Ramalho fazia da baunilha uma enorme orquídea, e da urtiga um mato que se come. A vontade era de tocar nessas palavras e senti-las como violentos espinhos de flor, ou como abóboras adocicadas.
Canções que já não ouviam mais no tempo, que caíram nos açudes e foram bebidas cheias de barro para dar a encorpada merecida. Elba Ramalho sabe como ninguém talhar feito queijo minas uma delicada especiaria que no nordeste chamam de música!
Elba Ramalho, Sagrama e convidados... interpretando "Cordas, Gonzaga e Afins" ainda traz toda uma linguagem visual, de figurinos, projeções e movimentos, que só os grandes sabem destrinchar. Transformar o simples em suntuoso, sem tirar sua característica brejeira é quase que achar mel esquecido em flor de cacto. Elba sabe como faz isso! Um cortejo, feito nos Dias de Reis, com as orquestras enluaradas, desmancharam-se no foyer com as mulatas, as branquelas e toda a gente pulando igual em festa de frevo.
O show será registrado em DVD, em um projeto da Natura Musical. A próxima apresentação acontecerá no Theatro NET SP hoje (26), às 21h. Ainda tem lugar!